Essa
noite foi muito divertida aqui na biblioteca. Porque eu conversei
sobre música com os eletrodomésticos. Tudo começou com a
geladeira.
(EU):
Qual a sua banda predileta, geladeira?
(GELADEIRA):
Ora, os alemães do KRAFTWERK que, em 1970, inventaram a música
eletrônica e desde então não pararam mais.
(EU):
E você, micro-ondas, por que concorda com isso?
(MICRO-ONDAS):
Porque essa banda começou com a dupla RALF HÜTTER e FLORIAN
SCHNEIDER, que estudavam música erudita na universidade em
Düsseldorf, ouviam um maestro doidão chamado KARLHEINZ STOCKHAUSEN
(1928-2007), que também inventou músicas eletrônicas, com sua
orquestra, trabalhando numa rádio em Colônia, Alemanha, e era
estudioso da música intuitiva. Assim Ralf e Florian começaram com
esse negócio de batidão. Antes mesmo do computador se massificar
eles já estavam inventando as batidas eletrônicas, com teclados e
sintetizadores cheios de fios improvisados mas com sons dançantes e
pop. Embora malucos de terninho e com cara de nerd, senão jeito de
robô mesmo, eles não foram bobos, fizeram tudo de propósito,
claro, artistas inteligentes também com a aparência, com as
narrativas visuais experimentadas no palco.
(EU):
Me explique a geografia de Düsseldorf, motor do carro, fiquei
curioso sobre essa cidade germânica…
(MOTOR
do CARRO): Vruuuum. Düsseldorf é uma cidade no oeste da Alemanha,
vruuum, ham ham, meu amigo, motorista Albani dos Ventos. O rio Reno
corta essa cidade ao meio. Sua parte antiga surgiu na Idade Média,
século XIII, mas a parte moderna é um polo industrial poderoso
desde a II Guerra Mundial. E foi no som dessas máquinas, batendo nas
fábricas e oficinas, que buscou inspiração a banda Kraftwerk,
aliás, em português, USINA de ENERGIA. Vruuuum. Ham ham.
(EU):
Ah! Entendi! E você, telefone celular, tão pequenino e com mais de
500 canções gravadas na memória, embora a gente nunca escute
todas, o que tudo isso significa?
(CELULAR):
Que o quarteto alemão escancarou em sua arte a mistura de homem e
máquina que vem nos envolvendo desde a Revolução Industrial
(1760), e mais ainda com a indústria cultural do século XX,
generosa nos lucros com os capitalistas (através do cinema, TV,
música, moda). Com seu jeitão discreto dentro e fora dos palcos, o
Kraftwerk teve uma ideia genial de considerar encerrado o ciclo dos
artistas geniais: agora, a música mais ouvida no mundo não dependia
mais do talento único de um maestro brilhante, de um pianista
virtuoso, de um guitarrista mirabolante, de um letrista sem igual,
pois tudo era eletrônico, ou digital: loops, círculos, repetições.
Tudo virou máquina! Uma música que nunca para, uma autoestrada
sonora, uma coisa que contamina que nem a radioatividade.
(EU):
O que pode ser ruim e bom! Veja o meu caso, celuloso telefone, curto
o Kraftwerk e outros músicos futuristas tipo assim a dupla francesa
DAFT PUNK, mas não deixo de curtir uma boa canção acústica, só
no violão, com um bom trovador nos contando umas histórias, rimando
e fazendo poesia, como o Gil Scott-Heron nos primórdios do hip hop,
o Bob Dylan na música folk, aqui no Brasil mesmo com um gaudério
xucro como o Gildo de Freitas ou no sertão das barrancas do rio
Gavião um músico que, somente com sua voz e violão encontrou
restos de Idade Média portuguesa e espanhola no Brasil caboclo. Me
refiro ao trovador ELOMAR FIGUEIRA MELLO. Além do que uma boa
sinfonia que nem aquelas do Beethoven e do Vivaldi também é um
barato!
(MÁQUINA
de LAVAR): Kling Klang Cha Cha Chua Chua Klang Kling. Quero dizer,
ninguém discorda disso. Somos máquinas, mas não somos ignorantes.
Claro, menos os revólveres e espingardas, que são máquinas feitas
para ignorantes, autêntica tecnologia feita para guri de 5ª série,
na melhor das hipóteses. Nós, pacíficas máquinas
eletrodomésticas, também adoramos quando o pedreiro da vizinha põe
pra tocar, bem alto, todos os sucessos cafonas de Roberto e Erasmo
Carlos, desde a Jovem Guarda até a Nossa Senhora de Aparecida.
(VASO
SANITÁRIO): Não sou assim tão moderno, mas escuto a eletrônica
também e gosto de limpar a cagada dos outros ouvindo outras bandas
da época do Kraftwerk, bandas com estilo mais barroco, menos pop,
inclusive, com um jeito meio macabro mesmo de tirar som dos
parafusos, como NEU! e o TANGERINE DREAM.
(TELEVISÃO):
Negócio é o seguinte, sei que sou bastante burra, mas pra quem é
curioso, além de ouvir na internet, pode ler três livros sobre o
Kraftwerk e a música eletrônica, meu irmão, que eu recomendo de
coração elétrico: HOMEM, MÁQUINA e MÚSICA (1993) de Pascal
Bussy; EU ERA UM ROBÔ (2000) do ex-integrante da banda, o Wolfgang
Flür e KRAFTWERK PUBLIKATION (2015) de David Buckley.
(CALCULADORA):
Tenho que dizer 1 2 3 4 5 6 7 + 5 x 5 = 25, além disso, digo também
que foi das batidas e ritmos desses alemães esquisitos que surgiu a
primeira batida eletrônica do hip hop, o PLANET ROCK (1982), do DJ
Kool Herc que veio, sampleado, pirateado, misturado, sei lá a
tradução correta, do tema do Kraftwerk: Expresso Trans Europeu
(1977) que, óbvio, lembra um trem nos trilhos.
(LIQUIDIFICADOR):
Sabe aquela vozinha metálica de robô que bomba hoje em dia em tudo
que é música? Pois é, esse som veio de músicas que nem essa do
trem alemão aí. E até o batidão do Miami Drum N´Bass veio
também, tipo que nem o grupo de Londres (isso mesmo: um grupo de
Londres tocando o som de Miami! Eitcha porra essa tal de globalização
hein!) o BAHA MEN (Who let the dogs out? - Quem soltou os cachorros?)
que por aqui virou, na favela, o funk batidão carioca (Só as
cachorras… Do Bonde do Tigrão, no ano 2000). Versão brasileira de
sucesso pop estrangeiro é coisa comum, ou seja, coisa antiga, em
país colonizado, com as suas ideias permanentemente fora de lugar:
lembrem-se da banda Renato e Seus Blue Caps fazendo sucesso na Jovem
Guarda (1965), traduzindo doidamente os Beatles.
(COMPUTADOR):
Blip Blop. Blop Blip. Atualizações estão disponíveis. Vírus
encontrado. Encerro essa arenga musical dizendo duas coisas: 1) Adoro
o estúdio do Kraftwerk, um laboratório criativo chamado KLING KLANG
onde os caras gravaram toda sua biruta bip bop bop bip discografia,
em Düsseldorf, e que foi inspirado noutro ateliê famoso e genial, A
FÁBRICA, do artista visual ANDY WARHOL (1928-1987). 2) As férias de
inverno sempre acabam também. Chega de estudo e de debate. Vamos
bater a bunda no chão!
(EU):
Computador, você não tem bunda! Um livro até tem, a bundinha do
livro, que é a última capa. Mas você não tem!
(COMPUTADOR):
Ah é! Vamos dançar assim mesmo. De qualquer jeito dançar!
Chacoalho meus bits, bytes, pixels e algoritmos: chu chu chá.
Vuuuush
P.
S.: Dedico esta crônica cósmica ao meu irmão Leco Brown que, no
começo dos anos 1990, punha pra tocar umas fitas K7 cheias de música
eletrônica das antigas e gravada também por alemães. Uma pirataria
deliciosa que nos afinou os ouvidos.
Gil Scott-Heron é um dos precursores do movimento HIP HOP ao lado de
outros artistas dos bairros Harlem e Bronx em Nova York: Afrika
Bambaata, o DJ Kool Herc, o coletivo LAST POETS, por exemplo. Gil,
portanto, é uma das primeiras e melhores vozes do RAP, música feita
de ritmo e de poesia.
Ele
nasceu em 1949, na cidade ventosa de Chicago, filho de uma professora
e de um jamaicano jogador de futebol. Viveu a infância com a avó
materna, Lily, que lhe ensinou a tocar o piano. Só conheceu o pai
aos 26 anos, como cantou em algumas de suas canções, quando então
já estava na ilha de Manhattan, cidade de Nova York. Sendo assim,
antes do pai, ele havia conhecido o movimento negro com o poeta AMIRI
BARAKA (1934-2014) e o escritor LANGSTON HUGHES (1902-1967)
Trancou
a sua faculdade para se dedicar a um projeto ousado: o livro ABUTRE,
lançado em 1970, no mesmo ano em que lançou outro livro, de poesia,
e o seu primeiro álbum de canções, ambas as obras chamadas
COCHICHOS na AVENIDA LENOX com a RUA 125. Ao longo dos anos 1970
seriam lançados vários outros álbuns, incluindo uma grande
parceria com o músico BRIAN JACKSON e a BANDA da MEIA-NOITE.
Gil
é um dos poetas mais criativos ao enfrentar a um dos piores legados
do capitalismo e do mundo moderno, mundo este criado por essa mesma
civilização capitalista (industrial, urbana, burguesa): falo da
ESCRAVIDÃO AFRICANA, uma das tantas maldições legadas pela
modernidade. E o livro ABUTRE, com seu enredo de romance policial,
trata de três crenças que se confrontam e, em vários momentos,
embaralham-se em todas as grandes cidades das três Américas (Do
Norte, Do Centro e Do Sul), lugares manchados pelo racismo, pela
desigualdade social, pela violência e pela pobreza, elementos
fundamentais para o lucro burguês sobre o trabalho (escravo)
moderno.
Nas
quebradas das periferias urbanas encontramos uma corrente pacifista,
que propõe resolver os conflitos de classe e do etnocentrismo
(preconceito racial e outros) através da comoção dos sentimentos
das pessoas, um autêntico apelo amoroso de igualdade e fé, conforme
o pastor batista MARTHIN LUTHER KING JR. (1929-1968) foi morto por
defender e, talvez, o valentão SPADE tenha, sem querer, se
aproximado, no livro de Gil, ao se apaixonar pela primeira vez.
Encontramos
também, especialmente nos anos 1960 e 1970, época do livro de Gil,
a corrente revolucionária, que não teme recorrer, não só à força
das ideias e dos sentimentos de igualdade, mas também à força das
armas, contra os gorilas fascistas, armados até os dentes com os
seus preconceitos, privilégios e propriedades sem fim, conforme
encarnou o rebelde MALCOLM X (1925-1965): o que inspirou o grupo
PANTERAS NEGRAS, entre outros, como o URNA (União Revolucionária
dos Negros Americanos), invenção de Gill para seu livro, dispostos
a encarar os policiais e as forças de segurança racistas e
autoritárias.
Por
fim, e provavelmente a corrente predominante, é a corrente gangsta,
ou seja, aqui no Brasil, a corrente da ostentação, muitas vezes
mergulhada na vida bandida mesmo, consciente ou inconscientemente
disso, abandonando qualquer resistência cultural e política negra
ou popular, simplesmente aderindo, de forma marginal, ao capitalismo
dominante – suas crenças e símbolos, entrando de cabeça na
guerra urbana com sua competição puramente comercial, que é o
tráfico de armas e drogas, sem nenhum freio humanista ou
trabalhista, no melhor espírito de cartel, que sempre prevalece no
capitalismo, disfarçado de individualismo, seja entre as gangues,
seja entre grandes corporações empresariais com marcas famosas. É
o espírito moderno de império e colonização em nome do dinheiro:
cagando e andando para as consciências, aliás entupindo as
consciências mais frágeis com drogas-mercadorias que servem como
mais um tipo de alienação (burrice) das massas, entenda-se, do
povão.
Logo
no seu primeiro álbum, Gil gravou um de seus maiores clássicos: THE
REVOLUTION WILL NOT BE TELEVISED - A REVOLUÇÃO NÃO VAI PASSAR NA
TV. No que pode se entender o seguinte: nunca as grandes empresas de
comunicação (propriedades de poucas famílias) vão colaborar,
através dos seus estúdios de TV, estações de rádio, portais de
internet e redes de jornais, com as lutas contra a supremacia do
dinheiro e dos burgueses. Para eles, será muito mais conveniente
para os seus negócios midiáticos, tolerar, senão mesmo, apoiar, os
projetos de governos brutamontes de topetudos bestas como Donald
Trump ou de playboys ignorantes, com conhecimento de, no máximo, 5ª
série, como o atual presidente do Brasil. O lance é, uma
alternativa a esses panacas, é a gente manter a consciência em
movimento e em expansão, sem esse papo de cabeça-dura ou de mente
fechada, independente da tua classe, cor, sexo e religião.
Gil,
além de vários álbuns de música e livros de poesia, fez também
outro romance (A Fábrica Negra) e uma autobiografia, publicada
depois que faleceu. Ele cantou no seu último disco lançado em vida,
“SOU NOVO POR AQUI”, uma frase, dentre muitas, linda pra caramba:
“Não importa o quão errado você já esteve, sempre dá para
mudar”.
Já
no seu comentário número um (Comment #1) ouve-se: “O que o
dicionário fala sobre a alma? Tudo o que eu quero é uma casa limpa,
uma companheira, crianças por perto e um pouco de comida para
jantarmos todas as noites”.
A
grande sacada desse artista é desejar, no seu canto negro e
universal, que isso seja para todos, brancos e negros, todos e todas.
Como
era a música popular brasileira no século XIX? Ora, repleta de
modinhas e lundus. O piano ia se achegando ao RJ, importado da
Europa, mas quem predominava nos ouvidos do povo era o muito mais
barato para se comprar e tocar, o violão, assim como o cavaquinho e
as flautas, também usados no choro. Instrumento ibérico (Portugal e
Espanha), o violão, ou guitarra, era a versão moderna dos alaúdes
árabes que colonizaram a Ibéria depois dos romanos. Por sua vez, o
alaúde é herdeiro das liras de Grécia e Roma Antigas, de Orfeu e
Homero.
Mas
voltemos ao Brasil do século XIX, quando o movimento artístico
romântico foi inaugurado por aqui, por escritores que também se
arriscaram em letras de música, como GONÇALVES de MAGALHÃES (1811
– 1882) e ARAÚJO PORTO-ALEGRE (1806-1879), impulsionados pela
Independência de 1822, desejando inventar uma coisa chamada Brasil,
em espaços como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1838) e principalmente na Loja do Canto, casa de chá (melhor não
há) do agitador cultural PAULA BRITO (1809-1861), que reuniam
figuras que, antes mesmo da indústria do disco, só inaugurada no
século XX (por volta de 1915 no Rio de Janeiro e Porto Alegre),
mesmo assim, conseguiram entrar pra história. Restaram algumas
partituras pioneiras, muitas letras e muitos causos, colhidos em
livros de quem viveu o século XIX ou logo após essa época.
Por
exemplo, um dos sucessos de então foi a parceria de PAULA BRITO com
o maestro que fez a música do hino brasileiro: FRANCISCO MANUEL DA
SILVA (1795-1865). A música era em ritmo de maxixe e se chamava: a
MARREQUINHA de IAIÁ. Muito funkeiro do século XXI vai ficar faceiro
ao ouvir esta letra musicada pelo nobre autor de nosso patriótico
hino verdeamarelo: um escracho pleno de duplo sentido (sexual).
Mas
a primeira dupla de compositores brasileiros, muito antes de Vinícius
de Moraes e Tom Jobim (que bolaram a mais famosa música brasileira:
GAROTA de IPANEMA), Raul Seixas e Paulo Coelho (gênios do rock
tupiniquim: GITA), e até mesmo de Lennon e McCartney (The Beatles),
Jagger e Richards (Rolling Stones), reuniu o poeta satírico LAURINDO
RABELO (1826-1864) e o violonista JOÃO CUNHA (CUNHA dos PASSARINHOS,
1830-1890).
Ambos
frequentavam a Loja do Canto e sua SOCIEDADE PETALÓGICA (dedicada ao
estudo do riso e da mentira). LAURINDO RABELO, filho de cigana, pobre
de doer, brigão convicto, tinha um jeitão de vestir e uma aparência
estroncha que lhe valeram o apelido de POETA LAGARTIXA. Seu único
livro publicado em vida, TROVAS (1853), é cheio de lirismo triste e
desgraçado. Mas a fama do moço veio mesmo das suas piadas, motes e
glosas, onde esculhambou geral com autoridades do Brasil Império.
Formado médico na Bahia, depois de abandonar o seminário de padres,
Lagartixa chegou a trabalhar de médico no RS durante as guerras com
as vizinhas repúblicas do Prata: Uruguay e Argentina, servindo na
fronteira gaúcha, em Bagé, mas também se desentendeu com gente
nobre e poderosa por aqui.
Depois,
aos trancos e barrancos, virou professor do pioneiro (e elitista)
Colégio Pedro II (1837) no RJ, onde teve um aluno, depois também
compositor e letrista, talentoso cronista, chamado MELLO MORAES FILHO
(1844-1919), aliás, tio-avô do poetinha Vinícius de Moraes. Em
livro de 1904, ARTISTAS do MEU TEMPO, encontramos um simpático
estudo sobre o Lagartixa, assinado por Mello Moraes Filho.
Ao
todo, constam 15 modinhas com letra de Lagartixa e música do Cunha
dos Passarinhos. Entre elas, a genial A ROSA DO CUME que, como se
ouve nas internéticas, fez sucesso desde o século XIX até hoje, em
Portugal também!
Para
conhecer essa época, do começo da canção brasileira, vale ouvir o
álbum de TEREZA PINESCHI – A MÚSICA BRASILEIRA ENTRE 1830 e 1910,
lançado em 2018. E claro, tem que ler a obra histórica de José
Veríssimo (1857-1916), Mello Moraes Filho, José Ramos Tinhorão, o
Dicionário Cravo Albin da MPB, Antenor Nascentes (1886-1972, que
reuniu toda a poesia, mais as modinhas do Lagartixa), e Olindo de
Moura, livreiro que editou em 1982 um folheto vagabundo que circulava
no RJ desde 1882, de editor anônimo, mas chamado o folheto POESIAS
LIVRES DE LAURINDO RABELO, compilando também a obra de nosso bardo e
menestrel.
Acrescento
também um salve a outro letrista e boêmio, o GUIMARÃES PASSOS
(1867-1909) que fundou a cadeira 26 da Academia Brasileira de Letras
e escolheu como patrono justamente o poeta Lagartixa. Bayta sacada!
Os
EUA ficam muito longe, meus amigos de leitura, de som e de viagem.
Por isso eu prefiro o Uruguay. O Uruguay do cantador ALFREDO
ZITARROSA.
Nascido
em 1936, filho de uma bailarina, mas criado até os 15 anos pelos
tios. O pai biológico nunca lhe reconheceu como filho.
Alfredo
Zitarrosa trabalhou por dez anos como jornalista e locutor de rádio,
até uma viagem ao Peru, sem um centavo no bolso, quando uns amigos
fizeram o cara cantar pra pagar as contas. Era 1964, e desde aquele
momento, o vozeirão e a poesia de Zita não deixaram mais de soar
por toda a América Latina.
Em
1966 estreou com o álbum CANTA ZITARROSA, álbum que vendeu parelho
aos discos dos Beatles, a maior banda da história, e que chegavam ao
Uruguay na mesma época. Em 1989, lançava o último álbum: SOBRE
PÁJAROS Y ALMAS, ao lado de um jovem cantador, Numa Moraes,
sublimando a ideia de passar seu legado adiante como poeta através
da canção popular.
Zita
considerava a milonga como madre (mãe), desde o campo, desde a
pampa, de todos os outros ritmos musicais da região platina. Ou
seja, o candombe negro, a chamarrita, a chacarera, o zamba.
Viveu
08 anos exilado, portanto, longe de sua terra natal, como Dante na
Itália do século XIV, como Da Vinci na mesma Itália no século
XVI, longe de casa. Enfim, o Uruguay também viveu o drama de gorilas
endinheirados e fardados que se acham donos da terra, da água, do
ar, do fogo e da fé e que governaram através de golpes e ditaduras
militares. Assim, ele passou pela Argentina, Espanha e México,
desterrado. Quando voltou, em 1984, foi acolhido por uma multidão,
que lotou as ruas de Montevidéu e as suas Ramblas (calçadões) no
Rio da Prata, para ouvir seu vozeirão de novo.
Em
1989, Zita faleceu. Não sem antes deixar uma biblioteca de mais de
2000 livros, quase todos lidos e rabiscados pelo artista. Também
fundou uma casa noturna chamada CLARABOYA AMARILLA, nos anos 1970,
onde a arte e o artista tinham prioridade e não o lucro.
Conta-se
que uma vez, contratado para um show de 07 músicas, na hora de subir
no palco o contratante lhe disse que havia tido um problema e o cachê
seria pela metade. Sem demora, Zita subiu ao palco, cantou, mas
exatamente no meio da terceira canção ele parou, explicou a redução
do pagamento ao público e convidou a todos para terminarem o recital
no bar da esquina, cantando as 3,5 canções que faltavam, e tocando
todas mais que eles quisessem ouvir.
Doña
Soledad (1968) é um de seus temas que eu mais curto:
Lula Côrtes foi o primeiro parceiro do famoso cantador surrealista do sertão paraibano, Zé Ramalho, quando os dois fizeram um álbum instrumental chamado Paêbiru, em 1975, todinho inspirado em desenhos pré-históricos da Pedra do Ingá, um sítio arqueológico da Paraíba.
Antes, ao lado do desenhista Laílson, e acompanhado de um tricórdio vindo do Marrocos, Lula já havia gravado o primeiro álbum independente da música brasileira, registro instrumental também: Satwa, onde misturou o nordeste com o oriente.
Pela fábrica Rozenblit, a Rosa de Sangue, uma grande gravadora pernambucana, de frevo e além, fundada em 1954, e engolida várias vezes por enchentes do rio Capibaribe, o mestre do udigrudi, ou seja, da cena underground, alternativa e autoral do Pernambuco, Lula gravou outros álbuns só lançados décadas depois de finalizados, inclusive lançados primeiro nos EUA e Europa...
Pintor surrealista, ele afirmou ter estudado três semanas na Espanha com Salvador Dalí, e sua guarda de guerreiros samurais.
Abaixo, Lula fala um pouco da sua vida de arte e anarquia e emenda quatro canções selvagens. Esses quatro poemas cantados são tipo que nem Baudelaire, só que invés de França, temos o Brasil tropical na mira do poeta.
A modernidade por aqui é ainda mais torta e grosseira, pois que colonizada. Nestas canções, a modernidade vem filtrada pelo lirismo de Lula, em busca de brechas, utopias individuais, contra o horror do poder, contra a ditadura do dinheiro, contra o fetiche das máquinas.
Vuuuush
AUDIÇÕES de FÉRIAS II
PLASTIC SODA
(Júpiter Apple, 1999)
Depois de bagunçar nossos ouvidos com as duas maiores bandas do rock gaúcho, TNT e Cascavelletes, Flávio Basso, o músico mais maluco de Porto Alegre, virou Júpiter Maçã e reinventou a cena musical independente com o álbum A SÉTIMA EFERVESCÊNCIA (1997).
Logo em seguida, ele viria com outro feito inédito: levar a delicadeza e a originalidade da BOSSA NOVA, a música brasileira mais tocada no mundo todo, para o universo da psicodelia, da contracultura, do experimentalismo roqueiro.
Beba essa soda plástica sonora, meu amigo, e descubra que nem a Bossa Nova é coisa de burguês e muito menos o Brasil é chato e ignorante como querem os bagaceiros fascistas verdeamarelos.
A paraibana SOCORRO LIRA lançou este ano o álbum CANTOS À BEIRA-MAR. Todinho feito sobre os poemas da primeira autora negra brasileira: MARIA FIRMINA dos REIS (1822-1917).
Poeta, professora, militante abolicionista e escritora do livro ÚRSULA (1859) e do conto A ESCRAVA (1887), Maria Firmina, Uma Maranhense, como assinou alguns textos, viveu em Guimarães, no Maranhão.
Em 1871 saiu o livro CANTOS À BEIRA-MAR, agora cantados com uma delicadeza desgraçada por Socorro Lira.
Era uma vez, no inverno de 2005. Eu entrei numa livraria em Gravataí/RS. A vendedora de livros era tão linda que, rapaz, me esqueci completamente do livro que eu precisava ler. Mas como eu não conhecia a língua dela, daí a menina não me deu nenhum desconto.
Voltei pra casa sem livro, sem guria, mas com esta música na cabeça...
A GURIA DA LIVRARIA
(c. a. albani da silva – o inventor do vento) Mesmo que seja Sexta-Feira Santa
Chegando logo a folia do Carnaval
No calor da tarde, no frio da noite, em qualquer dia
O que vale mesmo é a guria da livraria
Alguém anote o telefone, endereço
Da Marilyn Monroe de cabelos negros
Lendo História, Poesia ou Economia
Eu leio mesmo é a guria da livraria
Ainda que fosse uma Tragédia grega
Ou uma daquelas histórias de terror
Autoajuda, Best-Seller, Fantasia
Não tenha medo, guria da livraria
Don Juan está na sala de operações
E o Conde Drácula aparou o seu bigode
Façam plástica, malhação, terapia
Só deixem em paz a guria da livraria
Onde estão todas as cópias para a faculdade?
E aquela pasta com os arquivos digitais?
Bebendo rum, talvez licor, com os piratas
Mas não demitam a guria da livraria
Se a música não tocar no rádio
Tampouco o filme no cinema passar
Jogo estas letras todas num Romance
Para que quem o venda seja a guria da livraria
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A bateria foi gravada pelo Alemão
O resto todo por mim.
Vuuuush
Mas
ao ficar sabendo que uma bruxaria digital permite que as pessoas
envelheçam a cara, ele cantou pra mim um velho poema que ele
escreveu para uma musa chamada Leucônoe, que andava com a mesma
mania lá na Roma Antiga. Do livro ODES I de 23 antes do Cristo:
Não
interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti que
fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes os
cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for, quer
muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último apenas,
que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras vulcânicas.
Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo poda
a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada a
hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.