sexta-feira, 21 de dezembro de 2012


Allan Sieber, Uma obra de arte tem que fazer o público pensar, s/d

O primeiro dia do resto de sua vida
Enquanto aguardamos ansiosamente, outra vez, pelo fim do mundo – tal qual no ano 1000, em 1962, em 2000, ficamos com a poesia de João Cabral de Melo Neto...


Habitar o tempo
A F.A. Bandeira de Melo
(João Cabral de Melo Neto, do livro “A educação pela pedra”, 1966)

Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.

2.
E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.
Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.


Rita LeeHoje é o primeiro dia do resto de sua vida (1972): ´Cê tá entendo?:


Nei Van SoriaCara Comum (2012): Espécie em extinção?


Barão Vermelho e CazuzaCodinome Beija-Flor (2005): Mesmo acabando o mundo, o amor continuará sendo mera coincidência...

O Ano Mil
O historiador francês Georges Duby (1919-1996) escreveu em “O Ano Mil” (1967) a respeito do pensamento apocalíptico na Idade Média (500 a 1500 d.C.):

Capítulo II – A espera
           Para o cristianismo, a História possui uma orientação. O mundo tem uma idade. Foi criado por Deus numa certa época. Então ele escolheu-se um povo cuja marcha guia. Num certo ano, num certo dia, tornou-se homem entre os homens. Alguns textos, os da Sagrada Escritura, permitem o cálculo das datas, a da criação, a da encarnação, logo discernir os ritmos da História. Estes mesmos textos [...], os Evangelhos, o Apocalipse anunciam que um dia virá o fim do mundo. Ver-se-á surgir o Anti-Cristo que seduzirá os povos da terra. Depois o céu abrir-se-á para o retorno do Cristo em glória, vindo julgar os vivos e os mortos. No Reino, na Jerusalém celeste terminará a longa procissão do povo de Deus. Convém estar-se preparado para enfrentar o dia da cólera. Os monges dão o exemplo: cobriram-se com as vestes da abstinência e postaram-se na vanguarda da marcha coletiva. O seu sacrifício só tem sentido em função da espera. Mantêm-na. Exortam cada um a perscrutar os preliminares da Parúsia (2ª vinda de Cristo)”.  
            No mundo atual, todos esperamos pelo Armageddon, mas quem seriam os monges abstinentes?

Johnny Cash The man comes around (2002): 
O sentido da vida ou os deuses apenas apostando como a Terra acabará: Fogo? Água? Guerras nucleares? Limites absolutos do Capital? Poluição? Meteoros? Solidão?


O Apocalipse de São João

Capítulo 14, Versículos 14:19
            Então olhei e vi uma nuvem branca, na qual estava sentado alguém que parecia um ser humano, com uma coroa de ouro na cabeça e uma foice afiada na mão. Outro anjo saiu do templo e gritou bem forte para aquele que estava sentado na nuvem:
            - Use a sua foice e faça a colheita porque já chegou a hora de colher. A terra está pronta para a colheita!
            Depois o que estava sentado na nuvem passou a foice sobre a terra e fez a colheita.
            Aí outro anjo saiu do templo que está no céu e ele também tinha uma foice afiada.
            Depois outro anjo, que era o encarregado do fogo, saiu de perto do altar. Com voz forte ele gritou para o anjo que tinha a foice afiada:
            - Use a foice e corte os cachos de uvas da videira da terra, pois as uvas estão maduras!
            Então o anjo passou a foice sobre a terra, cortou os cachos de uvas da videira e os jogou no tanque da violenta ira de Deus, onde as uvas são pisadas. As uvas foram pisadas no tanque que ficava fora da cidade, e o rio de sangue que saiu desse tanque tinha trezentos quilômetros de comprimento por um metro e meio de fundura.  

Susana Félix e Jorge DrexlerA idade do Céu (2012): Tentando chegar ao Céu antes que fechem os portões.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Claire BrétécherAgripina, s/d

Resultado da promoção!!!
A vida em um parágrafo
              Quem poetou, filosofou, não teve medo de ser feliz - muito menos medo de ser triste, levou um CD demo do CoV!!!!
            Obrigado a todos os Ventosos leitores e leitoras que participaram, que divulgaram a promoção ou mesmo tentaram se expressar poeticamente. Pois “Poesia e Ficções são ventiladores contra o Inferno geral em que estamos metidos”. (Albani da Silva, Inventor do Vento)
 
1.  Parágrafo angelical
A vida é engraçada, mas não há coisa mais séria. A vida é um sonho lindo, cheia de pesadelos. A vida pode nos fechar as portas, mas também abrir uma janela na nossa frente. Facilmente a vida nos alivia, mas está sempre disposta a nos machucar. É tão justa essa vida de injustiças! Pois, feliz é a vida, que é tão triste. É tão simples, tão confusa! Tão monótona, tão impressionante! Tão renovadora, tão devastadora! Tão longa, tão curta.
(Angélica Andrade Reis, estudante do Vento na 8ª série da EMEF Alberto Pasqualini, Gravataí/RS)

2.  Parágrafo sem fim
Dezenove de Agosto de alguns anos atrás. Enchi os pulmões de ar e abri os olhos pela primeira vez neste lugar conhecido por planeta Terra. Inundação de sensações, sons, cores, aromas, formas e sentimentos, cavalgando o vento em minha direção. Devo aprender e entender o que se passa ao redor, amor, perdão, raiva, alienação. Devo aprender? Procuro conhecer as pessoas, entender a mim mesmo. Sorri e chorei, amo e odeio, fiz sorrir e fiz chorar, sou amado e sou odiado. Estarei certo ou errado? Hoje, abri os olhos, inundação de sensações, sons, cores, aromas, formas e sentimentos, cavalgando o vento em minha direção. Devo aprender... Amanhã, abrirei os olhos em algum lugar conhecido, ou desconhecido...
(A.S.A.S – Alex Sander Albani da Silva, irmão do Vento, cientista da computação, colecionador de Hot Wheels, pivô do Tchê Peleia F.C.)

3.  Parágrafo platino
 O que é a vida senão uma leve brisa, que de repente transforma-se em ventania; que vem não se sabe de onde e se vai não se sabe o porquê. A vida é o tempo incontrolável, a tranquilidade indispensável, o calor incalculável, o encontro improvável, o carinho indispensável, a paixão insaciável, o sentimento indecifrável, o amor inegável, a grandeza incomparável. Enfim, a vida é muito além de um simples respirar, é tudo, é um olhar, é sentir além de respirar. 
(Gabriela Paola Gonzalez, lectora del Viento, estudiante de Letras en la ULBRA/Gravataí-RS)

4.  A vida em vários parágrafos

Preconceito
- “Eu não tenho”
Afirmam muitos
- “Eu? Menos ainda”...
Mente o branco que cospe sobre o negro que ele chama de sujo.

Igualdade
“Liberem o casamento gay”!
E as velhas espantadas
Horrorizadas, com a Cruz em punho, gritam:
- “Isso é coisa do Satanás”!

Justiça
Saiu no jornal: “Jovem é pego traficando”
A sociedade clama: “Dê a severa pena ao menino”!
Mas os Direitos vêm e lhe protegem
Deixando-o na rua
Frio, sozinho, ele e sua lista
Lista em branco, com espaço para os crimes
Que ainda irá cometer

Dignidade
Entraram lado-a-lado
O rico metido e o pobre digno
O rico fica, o pobre sai
“O rico preencheu a vaga” diz
Mas na verdade ele tem nojo do pobre
E inveja da sua dignidade

Os católicos estão ajoelhados
Rezando
E do outro lado do mundo
Do muro, em uma barreira de vidro
Fiéis estão se matando
Cometendo injustiça
Cultivando o preconceito

Esperança!
Nos olhos da criança
No sorriso do adulto
No namoro do adolescente
Na vontade de mudar
De não ser só mais um
E, sim, ser o número 1!
(Lary Oliveira, leitora do Vento e estudante do curso de Magistério da Escola Estadual Princesa Isabel, Cachoeirinha/RS)

Bob DylanDignity (1995): Em busca da Dignidade, Dylan se depara com gordos, magros, homens ocos, sábios, jovens, pobres, feridos, abandonados, citadinos, caipiras, altos, baixos, policiais, oportunidades, circunstâncias, Mary Lou - a noiva, ameaças de morte, vultos, profundidades, línguas de anjos, vento cortante, casas em chamas, dívidas, janelas, sereias, pensadores, vozes, salas de espelhos, anos perdidos, Príncipe Felipe, anônimos, interesseiros, abusados, pegadas na areia, filhos das trevas, filhos da luz, cabarés, rios caudalosos, barcos que balançam, cartas, doentes, obras-primas da literatura, ingleses, cabelos curtos, fotografias – a Dignidade nunca foi fotografada, comunistas, negros, Vale Onde os Esqueletos sonham, tantas estradas, beiras de lago.

 Pato FuVida Imbecil (1995): Adolf Hitler, Frankenstein – realmente, algumas vezes, a Vida torna-se imbecil.

Led ZeppelinGoing to California (1975): Perdi meu tempo com uma moça cruel. Bebeu meu vinho, fumou meus cigarros. Estou decidido: recomeçar. Ir para a Califórnia (mas pode ser Cidreira, Tramandaí) com o coração doído.

Nação ZumbiCarimbó (2007): Tu chegou pra dançar; tu chegou pra marcar. Vamos dançar, vamos festar. Amanhã talvez não precise chorar.


Ben HarperDiamonds on the inside (2009): Diamantes por dentro. É o que vale. Por fora, já tem muita gente posando de popstar.

mundo livre s/aLivre Iniciativa (1995): Imperativos da Sociedade de Consumo: 1. Não importa de onde vem a bala, qualquer dia tu acorda cheio; 2. Trabalho, novo trabalho; 3. Não importa de onde vem a grana, tu tem que ter o bolso cheio.







quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Gérard Dubois, Tunney x Dempsey, s/d

     Quando você crescer
            Na mocidade, por vezes, não sabemos quem somos. Assim muitos jovens/adolescentes vivem  como “metamorfoses ambulantes” – uns por ingenuidade ou desleixo; outros por convicção, ousadia ou curiosidade. Num dia astronauta, noutro rockstar; num dia Zé Ninguém, noutro jogador de futebol; num dia namorado, noutro filho; num dia herói, noutro bandido; num dia sapeca, noutro tímido; num dia escritor, noutro analfabeto.

Já crescidinhos as dúvidas nos assolam também.

            O escritor mineiro Murilo Rubião (1916 – 1991) fez longa carreira como jornalista e servidor público – inclusive trabalhando no gabinete do Presidente Juscelino Kubistchek (1902 – 1976), quando este governou MG. Precursor da literatura fantástica e do realismo mágico no Brasil, assim Rubião descreveu a incoerência dos adolescentes:

Teleco, o coelhinho
(Murilo Rubião – Do livro “Os dragões e outros contos”, 1965)

Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.
(Provérbios, XXX, 18 e 19)
            - Moço, me dá um cigarro?
            A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
            O importuno pedinte insistia:
            - Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?
            Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
            - Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
            - Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
            Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
            - Você não dá é porque não tem, não é, moço?
            O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato, apenas o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.
            Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho - acrescentei.
            A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:
            - Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho?
            Não esperou pela resposta:
            - Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.
            Dizendo isto, transformou-se numa girafa.
            - À noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?
            Respondi que não e fomos morar juntos.
           
            Chamava-se Teleco.
            Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.
            Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos e ameaçavam prendê-los.
            Apenas uma vez tive medo de que as travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações. Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidas para que o homem tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente tinha diante de si um pacífico coelho:
            - O senhor viu o que eu vi?
            Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de anormal.
            O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem despedir, ganhou a porta da rua.
           
            A mim também pregava-me peças. Se encontrava vazia a casa, já sabia que ele estava escondido em algum canto, dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo, sob a forma de pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada, me transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra. Simulando arrependimento, Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes.
            No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave que possuía todas e de espécie totalmente desconhecida ou de raça extinta.
            - Não existe pássaro assim!
            - Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos.

            O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha mal-humorado e a cena que deparei, ao abrir a porta da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.
            - O que deseja a senhora com esse horrendo animal? - perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.
            - Eu sou Teleco - antecipou-se, dando uma risadinha.
            Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho.
            Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.
            Ante a minha incredulidade, transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo. Lancei-o longe, cheio de asco.
            Retomando a forma de canguru, inquiriu-me, com um ar bastante grave:
            - Basta esta prova?
            - Basta. E daí? O que você quer?
            - De hoje em dia serei apenas homem.
            - Homem? - indaguei atônito. Não resisti ao ridículo da situação e dei uma gargalhada:
            - E isso? - apontei para a mulher. - É uma lagartixa ou um filhote de salamandra?
            Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:
            - É Tereza. Veio morar conosco. Não é linda?

            Sem dúvida, linda. Durante a noite, na qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice de Teleco em afirmar-se homem.
            Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos gracejos do meu companheiro.
            Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos braços:
            - Vamos, Teleco, chega de trapaça.
            Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:
            - Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é, Tereza?
            Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo a cabeça.
            Explodi, encolerizado:
            - Se é Barbosa, rua! E não me ponha mais os pés aqui, filho de um rato!
            Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.
            Embora encarasse com ceticismo a possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto demoveu-me da decisão anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.

            Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu aparelho de barbear, de minha escova de dentes e pouco serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração.
            Também a sua figura tosca me repugnava. A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos elogios à minha pessoa.
            Por outro lado, custava tolerar suas mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de comida com o auxílio das mãos.
            Talvez por ter-me abandonado aos encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem protesto, a presença incômoda de Barbosa.
            Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor a sua falsa condição humana, ela me respondia com uma convicção desconcertante:
            - Ele se chama Barbosa e é um homem.
            O canguru percebeu o meu interesse pela sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tornou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.
            Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.
            - Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala.
            - Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais.

            Nesse meio tempo, meu amor por Tereza oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.
            Fria, sem rodeios, ela encerrou o assunto:
            - A sua proposta é menos generosa do que você imagina. Ele vale muito mais.
            As palavras usadas para recusar-me convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito as habilidades de Teleco.
            Frustrada a tentativa do noivado, não podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.
            O canguru notou a mudança no meu comportamento e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.

            Uma tarde, voltando do trabalho, minha atenção foi alertada para um som ensurdecedor da eletrola, ligada com todo volume. Logo ao abrir a porta, senti o sangue a afluir-me à cabeça: Tereza e Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.
            Indignado, separei-os. Agarrei o canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:
            - É ou não é um animal?
            - Não, sou um homem! - E soluçava, esperneando, transido de medo pela fúria que via nos meus olhos.
            À Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia:
            - Não sou um homem, querida? Fala com ele:
            - Sim, amor, você é um homem.
            Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa no chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.
            Ainda na rua, muito excitada, ela me advertiu:
            - Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!

            Foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. À falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de nomes.
            A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e voltara-me o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupava com a coleção.
            Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia, não cheguei a enxotá-lo.
            - Sou o Teleco, seu amigo - afirmou, com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.
            - E ela? - perguntei com simulada displicência.
            - Tereza… - sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão.
            - Havia muitas cores… o circo… ela estava linda… foi horrível… - prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.
            Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:
            - O uniforme… muito branco… cinco cordas… amanhã serei homem… - as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.
            Por um momento, ficou a tossir. Uma tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava com as mutações dele em bichos maiores, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele não conseguia controlar-se.
            Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos e confusos.
            - Pare com isso e fale mais calmo - insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.
            - Não posso - tartamudeava, sob a pele de um lagarto.

            Alguns dias transcorridos, perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo.
            Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.
            Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, trissava.
            Por fim, já menos intranquilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava.
            Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.

Aerosmith Sunshine (2001): Alice embestou de seguir o Coelho Branco”… Esta canção vai para o Profeta Miqueias que prevê o futuro, mas tem um caso de amor com o passado.

Pirisca GreccoBuraco no Peito (2007): Gaúcho encontrado com um buraco no lado esquerdo do peito. Bem que pode ter sido a carabina da Pitty no pobrezinho, mas grosso, do Gildo de Freitas. 

Peter Tosh Johnny Be Goode (1983): Um clássico Rock dos anos 1950, de Chuck Berry, importado pela Jamaica:


Noel GuaranyBalseiros do Rio Uruguay (1975): Vou soltar minha balsa no rio. Vou rever maravilhas que ninguém descobriu. Amanhã vou me embora. Vou levando na minha balsa cedro, angico e canjerana.

Norah Jones Miriam (2012): O resto é silêncio!