Gérard Dubois, Tunney x Dempsey,
s/d
Quando você crescer
Na
mocidade, por vezes, não sabemos quem somos. Assim muitos jovens/adolescentes vivem como “metamorfoses ambulantes” – uns por
ingenuidade ou desleixo; outros por convicção, ousadia ou curiosidade. Num dia
astronauta, noutro rockstar; num dia
Zé Ninguém, noutro jogador de futebol; num dia namorado, noutro filho; num dia
herói, noutro bandido; num dia sapeca, noutro tímido; num dia escritor, noutro
analfabeto.
Já crescidinhos as dúvidas nos assolam
também.
O
escritor mineiro Murilo Rubião (1916 – 1991) fez longa carreira como
jornalista e servidor público – inclusive trabalhando no gabinete do Presidente
Juscelino Kubistchek
(1902 – 1976), quando este governou MG. Precursor da literatura fantástica
e do realismo
mágico no Brasil, assim Rubião descreveu a
incoerência dos adolescentes:
Teleco, o
coelhinho
(Murilo Rubião – Do livro “Os
dragões e outros contos”, 1965)
Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta
eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a
pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.
(Provérbios, XXX, 18 e 19)
- Moço, me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro.
Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com
ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
- Moço, oh! moço! Moço, me dá um
cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia,
resmunguei:
- Vá embora, moleque, senão chamo a
polícia.
- Está bem, moço. Não se zangue. E,
por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem
assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui
desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me
interpelar delicadamente:
- Você não dá é porque não tem, não
é, moço?
O seu jeito polido de dizer as
coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que
melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então
conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato, apenas o coelhinho
falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o
supus com mais idade do que realmente aparentava.
Ao fim da tarde, indaguei onde ele
morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse
momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e
convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho - acrescentei.
A explicação não o convenceu.
Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:
- Por acaso, o senhor gosta de carne
de coelho?
Não esperou pela resposta:
- Se gosta, pode procurar outro,
porque a versatilidade é o meu fraco.
Dizendo isto, transformou-se numa
girafa.
-
À noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de
alguém tão instável?
Respondi que não e fomos morar
juntos.
Chamava-se Teleco.
Depois de uma convivência maior,
descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples
desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos,
divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo
que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar,
conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.
Não simpatizava com alguns vizinhos,
entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de
leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas
assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as
denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo,
outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos
e ameaçavam prendê-los.
Apenas uma vez tive medo de que as
travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações.
Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido
por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco-do-mato. A
mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidas para que o homem
tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente tinha diante
de si um pacífico coelho:
- O senhor viu o que eu vi?
Respondi, forçando uma cara
inocente, que nada vira de anormal.
O homem olhou-me desconfiado, alisou
a barba e, sem despedir, ganhou a porta da rua.
A mim também pregava-me peças. Se
encontrava vazia a casa, já sabia que ele estava escondido em algum canto,
dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo, sob a forma de
pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me
impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo
susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada, me
transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra.
Simulando arrependimento, Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos
as pazes.
No mais, era o amigo dócil, que nos
encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia
transmudado em ave que possuía todas e de espécie totalmente desconhecida ou de
raça extinta.
- Não existe pássaro assim!
- Sei. Mas seria insípido
disfarçar-me somente em animais conhecidos.
O primeiro atrito grave que tive com
Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha
cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha
mal-humorado e a cena que deparei, ao abrir a porta da entrada, agravou minha
irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se
uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus
olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.
- O que deseja a senhora com esse
horrendo animal? - perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por
estranhos.
- Eu sou Teleco - antecipou-se,
dando uma risadinha.
Mirei com desprezo aquele bicho
mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me
fazia lembrar o travesso coelhinho.
Neguei-me a aceitar como verdadeira
a afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se
vestido teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.
Ante a minha incredulidade,
transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo.
Lancei-o longe, cheio de asco.
Retomando a forma de canguru,
inquiriu-me, com um ar bastante grave:
- Basta esta prova?
- Basta. E daí? O que você quer?
- De hoje em dia serei apenas homem.
- Homem? - indaguei atônito. Não
resisti ao ridículo da situação e dei uma gargalhada:
- E isso? - apontei para a mulher. -
É uma lagartixa ou um filhote de salamandra?
Ela me olhou com raiva. Quis
retrucar, porém ele atalhou:
- É Tereza. Veio morar conosco. Não
é linda?
Sem dúvida, linda. Durante a noite,
na qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice
de Teleco em afirmar-se homem.
Levantei-me de madrugada e me dirigi
à sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um
dos gracejos do meu companheiro.
Enganava-me. Deitado ao lado da moça,
no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos braços:
- Vamos, Teleco, chega de trapaça.
Abriu os olhos, assustado, mas, ao
reconhecer-me, sorriu:
-
Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é, Tereza?
Ela, que acabara de despertar,
assentiu, movendo a cabeça.
Explodi, encolerizado:
- Se é Barbosa, rua! E não me ponha
mais os pés aqui, filho de um rato!
Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto
e, ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o
expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.
Embora encarasse com ceticismo a
possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto demoveu-me da decisão
anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de
Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.
Barbosa tinha hábitos horríveis.
Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade
que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu
aparelho de barbear, de minha escova de dentes e pouco serviu comprar-lhe esses
objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso,
desculpava-se, alegando distração.
Também a sua figura tosca me
repugnava. A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não
media esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos
elogios à minha pessoa.
Por outro lado, custava tolerar suas
mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de
comida com o auxílio das mãos.
Talvez por ter-me abandonado aos
encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem
protesto, a presença incômoda de Barbosa.
Se afirmava ser tolice de Teleco
querer nos impor a sua falsa condição humana, ela me respondia com uma
convicção desconcertante:
- Ele se chama Barbosa e é um homem.
O canguru percebeu o meu interesse
pela sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza,
tornou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas
roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.
Em diversas ocasiões, apelei para a
sua frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.
- Voltar a ser coelho? Nunca fui
bicho. Nem sei de quem você fala.
-
Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros
animais.
Nesse meio tempo, meu amor por
Tereza oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser
correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.
Fria, sem rodeios, ela encerrou o
assunto:
- A sua proposta é menos generosa do
que você imagina. Ele vale muito mais.
As palavras usadas para recusar-me
convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito as habilidades de
Teleco.
Frustrada a tentativa do noivado,
não podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.
O canguru notou a mudança no meu
comportamento e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.
Uma tarde, voltando do trabalho,
minha atenção foi alertada para um som ensurdecedor da eletrola, ligada com
todo volume. Logo ao abrir a porta, senti o sangue a afluir-me à cabeça: Tereza
e Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.
Indignado, separei-os. Agarrei o
canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:
- É ou não é um animal?
- Não, sou um homem! - E soluçava,
esperneando, transido de medo pela fúria que via nos meus olhos.
À Tereza, que acudira, ouvindo seus
gritos, pedia:
- Não sou um homem, querida? Fala
com ele:
- Sim, amor, você é um homem.
Por mais absurdo que me parecesse,
havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei
Barbosa no chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.
Ainda na rua, muito excitada, ela me
advertiu:
- Farei de Barbosa um homem
importante, seu porcaria!
Foi a última vez que os vi. Tive,
mais tarde, vagas notícias de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na
cidade. À falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de
nomes.
A
minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e voltara-me o interesse pelos
selos. As horas disponíveis eu as ocupava com a coleção.
Estava, uma noite, precisamente
colando exemplares raros recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro,
um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia, não
cheguei a enxotá-lo.
- Sou o Teleco, seu amigo - afirmou,
com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.
- E ela? - perguntei com simulada
displicência.
- Tereza… - sem que concluísse a
frase, adquiriu as formas de um pavão.
- Havia muitas cores… o circo… ela
estava linda… foi horrível… - prosseguiu, chocalhando os guizos de uma
cascavel.
Seguiu-se breve silêncio, antes que
voltasse a falar:
- O uniforme… muito branco… cinco
cordas… amanhã serei homem… - as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à
medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.
Por um momento, ficou a tossir. Uma
tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava com as mutações dele em bichos
maiores, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele não conseguia
controlar-se.
Debalde tentava exprimir-se. Os
períodos saltavam curtos e confusos.
- Pare com isso e fale mais calmo -
insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.
- Não posso - tartamudeava, sob a
pele de um lagarto.
Alguns dias transcorridos, perdurava
o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se
seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia
alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que
encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus
olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato,
ficavam enormes na face de um hipopótamo.
Ante a minha impotência em
diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém,
crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.
Não mais falava: mugia, crocitava,
zurrava, guinchava, bramia, trissava.
Por fim, já menos intranquilo,
limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma
de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo
ardia em febre, transpirava.
Na
última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado
pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma
coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança
encardida, sem dentes. Morta.
Aerosmith – Sunshine (2001): “Alice
embestou de seguir o Coelho Branco”… Esta canção vai para o Profeta Miqueias
que prevê o futuro, mas tem um caso de amor com o passado.
Pirisca Grecco – Buraco no Peito (2007): Gaúcho encontrado com um
buraco no lado esquerdo do peito. Bem que pode ter sido a carabina da Pitty no
pobrezinho, mas grosso, do Gildo de Freitas.
Peter Tosh – Johnny Be Goode (1983): Um clássico Rock dos anos
1950, de Chuck Berry, importado pela Jamaica:
Noel Guarany – Balseiros do Rio Uruguay (1975): Vou
soltar minha balsa no rio. Vou rever maravilhas que ninguém descobriu. Amanhã
vou me embora. Vou levando na minha balsa cedro, angico e canjerana.
Norah
Jones – Miriam
(2012): O
resto é silêncio!
A vida em um parágrafo: O que é a vida senão uma leve brisa, que de repente transforma-se em ventania. Que vem não se sabe de onde e se vai não se sabe o porquê. A vida é o tempo incontrolável, a tranquilidade indispensável, o calor incalculável, o encontro improvável, o carinho indispensável, a paixão insaciável, o sentimento indecifrável, o amor inegável, a grandeza incomparável. Enfim, a vida é muito além de um simples respirar, é tudo, é um olhar, é sentir além de respirar.
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