segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Oitentanos de Ignácio de Loyola Brandão: Zero

Arte por Arnaldo Branco

Em 2016, o escritor paulista Ignácio de Loyola Brandão chega aos 80 anos. Autor de extensa bibliografia, destaco aqui seu livro: Zero, finalizado em 1973. Uma das primeiras obras de ficção a futricar na Ditadura Militar que logo de cara o baniu. O que não impediu de o livro virar um clássico. Nesse caso, um daqueles livros em que a gente lamenta que ainda seja atual...

José, Rosa, Átila, tantas outras gentes de papel que aparecem no livro, extraviadas, em uma reincidente Gotham Tropical:

Zero foi produto de nove anos de trabalho. Iniciado em 1964, logo depois do golpe, ele se estendeu até 1973, quando terminei a primeira versão. Um livro violento, de raiva. Eu estava indignado, puto com os militares, odiava a censura aos livros e à imprensa, que eu sofria diretamente. Como lutar? Ir jogar bombas? Pegar em armas? Não sou disso. Então criei minha “bomba”. Aquele livro foi minha bomba”. Ignácio fala a Luiz Rebinski, jornal Rascunho, julho de 2016.

E agora o livro fala por si mesmo:

 TEMPERATURA INSTÁVEL, SUJEITA A CHUVAS E TROVOADAS
No país, há calma.
O congresso foi fechado. Prisão de cem deputados federais e estaduais. Aumentados os vencimentos dos militares. A polícia recebeu gases estrangeiros para os trabalhos de repressão.
Continua, todas as noites, nas praças principais de todas as cidades, a queima de livros ao som de hinos religiosos.

INSCRIÇÕES DE PRIVADA
Neste lugar solitário
Toda valentia se apaga
O mais forte só geme
O mais corajoso se caga.

QUEM QUER, PODE
O Secretário da Segurança foi a televisão e pediu a colaboração do povo diante da onda de assaltos. “É preciso reagir, não ficar passivo, guardar a fisionomia dos bandidos, denunciar, ajudar a polícia a conter a onda de assaltos, prostituição, contrabando, tráfico de entorpecentes. Vamos fazer de cada cidadão um policial”.

AVISO AOS NAVEGANTES
Não há aviso aos navegantes.

Cidadão,
O civismo precisa existir dentro de cada um. Precisamos amar nossa pátria. Você, eu, todos, precisamos amar e honrar o pavilhão nacional. Sejamos dignos dele. No dia da Pátria, coloque uma bandeira em sua janela e compareça às festividades.

.Me dá uma bandeira.
?Grande ou pequena.
.Olha, eu pedi uma.
.Tem de levar duas.
?Por quê.
.Uma pra casa, outra pro desfile.
.Eu lá vou em desfiles.
.Tem de ir. Determinação Sagrada n° 7.
.Eu nem sabia disso.
.O aviso veio com imposto de altura.
.Nem olhei o meu, nunca olho aquela merda de papelada. É tanto. Rosa é que cuida deles.
            Feriados: dia da pátria, dia do soldado, dia da proclamação da República, dia do aniversário do presidente, aniversário da mulher do presidente, aniversário da cabra mascote do regimento 11, grupo heróico da guerra.

DETERMINAÇÃO OFICIAL
O arauto proclamou:
A partir desta data, os homens só devem apanhar os táxis pretos. As mulheres, os amarelos.

ESTILHAÇOS DO BOMBARDEIO SOBRE JOSÉ
?O senhor quer comprar uma mesa que não tem nada de excepcional.
?O senhor quer comprar um colchão anatômico.
?O senhor quer comprar uma coleção de livros em branco. Assim não é necessário ler.
?O senhor quer comprar um garfo que leva comida à boca sem o uso das mãos.

TRILHA SONORA sugerida pelo COV
O roqueiro Marcelo Nova tem uma poética Zero:


Marcelo NovaMuito Além do Jardim


Marcelo NovaAinda Não Está Escuro


Marcelo NovaBomba Relógio Ambulante


Marcelo NovaFaça a coisa certa

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Tyrteu Rocha Vianna – Saco de Viagem (1928)

José Lutzemberger, Aquarela sem título, 1935


Tyrteu Rocha Vianna (1898 a 1963) fez um só livro de poesia: Saco de Viagem, em 1928. E atrafuncou a boa bagunça modernista nesses pagos longe demais das capitais no sul do sul do Brasil. Entre a “Vontade de versos futuristas” e os “Churrascos de Viagens”, partes do seu sumido livro, percebemos que alguns cavalos estão montados em homens neste rincão e muitos gaúchos vão de a pé mesmo pelas veredas empoeiradas do asfalto quente.

Recordações
Tyrteu Rocha Vianna – Saco de Viagem (1928)

O general Bento Gonçalves da Silva 
Fez a separatória república de 35 
Com bandeira 
Verde amarela encarnada 
Escudo complicado 
Ajutório de Garibaldi dei due mondi 
E o rubro barrete frígio 
Da mulher deusa Razão parisiense 
Quando eu gurizava fundaços passarinheiros 
Em um São Chico bastante menor 
Que o 
O atualíssimo de empréstimo americano 
Asseio público e praça de esportes 
Hipotéticas hipóteses relatoriaes 
Ditadurazinha desgovernamental de Trois...tky 
Felizmente quadrienal 
Homenageavam filarmônica churrasco 
Cervejada subscrição República de Piratinim 
Subindo barbante 
Foguetório vivarada 
Discurso obrigatório major Laláo 
Meio metro bandeiral 
Histórico reverenciando respeito 
Trapo nem verde nem amarelo nem mais nada 
Meu Pai respondente 
Sentado me dizia 
É o regime econômico vaca magra 
Das tetudas economias invisíveis 
Do dinheiro municipal calotíssimo

No Galpão
(a Raul Bopp)
Tyrteu Rocha Vianna – Saco de Viagem (1928)


Lá fora o patrão D. Inverno
Mais D. Frio e seu capataz Minuano
Mais a peonada deles feita de pingos de garoa
Iam repontando
A manada retacona dos peães
Do pasto alto das noturnas calaveiragens pelos ranchos
Da vizinhança grávida de gurias cubiços palpáveis
Para a mangueira das 4 paredes do galpão
E à roda do fogo D. Chimarrão os pastorejava
Formados
Seu Tibúrcio era o contador de histórias de plantão
Sia dona Conversa foi vindo vagarosa e lerda
Como a baia aguateira lunanca
E pela boca desdentada do Aurélio chegou-se
Na história recente dos fantasmas assombradores
Do posto do rodeio das bragadas
Houve risadas mui reticênciais dos circunstantes
Largas longas e cortantes como facão marca touro
E D. Silêncio chegou montado no pschit
Do capataz bandaoriental D.Fulano
Seu Tibúrcio mandou D. Silêncio à fava
E foi se defendendo na maciota
Retrucão a fechar um criolo filado
Mas não foi eu que o sobreintendente
Ia prender na cadeia
Como desencaminhador da fia mais moça
Da siá dona Anaia
E o pai do aleijadinho
E logo em seguida
Deu vontade de fazer pipi no capataz
Bandaoriental D. Fulano
Peleador de amores impuberes abafados




quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O Dia Vai Ser Nublado (No Sete de Setembro)


Vi esses tipos e gentes num sonho
Era desfile de 07 de setembro
A bandeira da Bruzundanga
Ia enrolada / E cinza estava
Ao menos, todos marchavam
(para trás, para trás)...


O DIA VAI SER NUBLADO
(C. A. Albani da Silva, o Inventor do Vento)

O João levantava tão cedo que não era mais preciso dormir
Ele que acordava o galo para o galo cantar
O João por causa disso nem conseguia mais sonhar
O que era um problema, pois ganhava dinheiro e não sabia onde gastar

João
Meu irmão

O João tinha um velho amigo que se chamava José
O José pretendia estudar filosofia
Tomou um empréstimo do banco para pagar a faculdade
E logo aprendeu que no mundo não há apenas uma verdade

José
Filósofo

O José tinha uma namorada que se chamava Maria
Tão meiga quanto uma flor seja de noite ou de dia
Num fim de semana qualquer em que José estudava a sociedade
Maria saiu com Marcelo e acabou aprontando algumas sacanagens

Maria
Mamãe

Na casa da Maria trabalhava um pedreiro que contava umas histórias
Dizia que havia viajado pros EUA
Lá ganhava muita grana trabalhando de frentista num posto
Mas ele abandonou o Tio Sam porque sentia saudades do nosso café

Café
No bule

O pedreiro tinha uma irmã que frequentava uma comunidade espírita
A irmã dizia reencarnar a Luíza Mahin
Esta, por sua vez, reencarnava a Cleópatra
Sua sina era lutar pela liberdade sem fim

Abaixo com os grilhões
Ponham isso nas Constituições

A irmã do pedreiro tinha um namorado chamado Leandro
Ponta esquerda do time da loja de sapatos
Na final do campeonato de várzea num domingo ensolarado
O Léo bateu a falta no ângulo e correu pro abraço

Leandro
Campeão

O Leandro era sobrinho de um metalúrgico de esquerda
Líder de um sindicato da categoria
Certa empresa se negava a dar uma cesta e um peru de Natal
Alegando que a crise era grande no mercado internacional

Tio do Leandro
Greve geral

O tio do Leandro era neto do Seu Mathias
Seu Mathias se lembrava saudoso dos tempos de Getúlio Vargas
Contava que esteve presente na inauguração da Petrobrás
E acreditava que Getúlio tinha sido assassinado

Seu Mathias
Bons tempos que não voltam mais

A segunda esposa do Seu Mathias era descendente de italianos
O avô dela chegou por aqui em 1875
Dona Irene conheceu Seu Mathias num terreiro de umbanda
Casaram-se abençoados por Xangô

Xangô
Iansã

Um dos padrinhos do casamento de Irene era advogado
Especialista em Direito familiar
Todos os filhos de Dr. Antônio também seguiram a advocacia
Era uma grande família de homens da Lei

Vossa Excelência
Doutor

Dr. Antônio teve uma bisneta que não conheceu
A Camila era filha do seu neto mais moço
Ela mandou pro espaço todo esse papo de legislação
E foi embora pra São Paulo estudar teatro

Vitupério
Desgosto pro velho

A Camila teve uma professora chamada Otília
Ela sempre incentivava os seus dotes artísticos
“Sora” Otília havia nascido em Manaus, Amazonas
Sonhava em casar com um francês e ir morar em Paris

Tout comprendre
C´est tout pardonner

“Sora” Otília tinha um irmão que enfiou na cabeça que ia ser cineasta
O Irajara vendeu o seu carro e comprou uma câmera
Tentou fazer uns filmes de arte mas não obteve nenhum sucesso
Até que alugou um barraco apertado e montou uma empresa de filmes “pornô”

Filmes “cabeça”
Sussurros e gemidos

A Marlene trabalhou por dez anos na “Ira - Prazeres e Produções”
Depois que largou a carreira de atriz fundou uma creche
Aplicou boa parte das suas finanças em obras de caridade
Desfilou nua na rua em protesto pelas Diretas Já

Marlene
Ribamar Sarney

A Marlene costumava almoçar e jantar no restaurante do Paulo
O Paulão tocava teclado na paróquia do bairro
Seguido sentia saudades da Juventude Católica
E sempre comentava aos amigos que lá conheceu a mulher


Nossa Senhora do Rosário
Este mundo não tem mais solução

O Paulão não gostava muito do emprego do primo
Pois Luciano era pastor neopentecostal
Também havia se filiado ao Partido dos Trabalhadores
E estava de viagem marcada pra uma reunião do Comitê Regional

Pastor Luciano
Almoço grátis no Paulão

Pastor Luciano era sogro do Pedro
O Pedro era policial militar
Pastor Luciano não gostava nenhum pouco disso
E vivia dizendo pro genro virar guarda municipal

Estimado Pedro
Jesus é o Senhor, Ordem é Progresso

Tenente Pedro era pai do jovem André
O André tocava guitarra numa banda de rock
Apesar do Tenente insistir que música boa era samba e vaneira
Pro André música de verdade era com o Led Zeppelin

André
Stairway to Heaven

O André estava gamado na colega Elisa
A Elisa era a coisa mais linda que ele já tinha visto
Quando Isa passava na escola era como se o mundo inteiro parasse
E a única coisa que se restasse movendo fosse o coração do André

Elisa
Nos pensamentos do André

A Elisa era vizinha do incansável João
Aquele que acordava o galo para o galo cantar
Isa tinha cinco cachorros e uns nove gatos que
Viviam sujando o pátio e roubando as roupas no varal do João

João
Técnico em computação
João
O dia vai ser nublado deu no jornal

- Não há início melhor: do que um ponto final -
(Laboratório de Sons do Vento, Maio de 2014)