quinta-feira, 27 de junho de 2013

Quem seria o rei dos vândalos?

Jacques-Louis David, A Morte de Marat, 1793


Nota Introdutória do Vento
O discurso da Presidenta (cadeia nacional de rádio e TV, 21.06) foi uma espécie de mapa político do Brasil Contemporâneo: a cartografar a colcha de retalhos dos interesses diversos que a Era Lula/Dilma vêm bordando (via governo) na última década.

Por um lado, o lobby do poder econômico e da grande imprensa, para muitos, só escancarado agora em pleno torneio FIFA; por outros lados, os pequenos focos de "guerrilha" cultural e política, movimentos sociais que nascem, morrem, resistem artesanalmente desde 1988 – como o Movimento Passe Livre, a campanha por 10% do PIB na educação pública; ainda Igrejas e Templos e Homens Santos; também as galáxias de trabalhadores; por fim (ou talvez por começo?) a juventude via internet e ruas se "indignando" no atacado e no plural...

Segue em aberto o genuíno embate entre a Esquerda e a Direita – marco fundador da Idade Contemporânea e sua Revolução Francesa.

O desconforto geral da vida urbana tem reafirmado que ainda estamos em uma sociedade de massas, pouco, até mesmo nada, pós-industrial ou pós-moderna.

Em suma: quem será o pólo Norte magnético na disputa pela apropriação (privada ou pública) do poder, da riqueza e do conhecimento neste Brasil do Século XXI?
(C.A. Albani da Silva, 25.06.2013)

Dilma RoussefPronunciamento oficial (21.06.2013): 


O livro do riso e do esquecimento
“É, sim”, concordou o estudante com entusiasmo. O mundo lhe pareceu dividido em duas metades, das quais uma é a metade do amor e a outra a da brincadeira, e viu que, no que lhe dizia respeito, ele pertencia e pertenceria ao exército de Petrarca (o do amor).
(Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento, 1978).


Nei LisboaMãos Demais (2013): Esta eu fico devendo ao blogue Diário Gauche e aproveito também para reforçar o convite para colaborarmos com o financiamento, no Coletivo Catarse, do novo disco do Nei – “A Vida Inteira”: http://catarse.me/pt/neilisboa



Cavalgando o VentoCanção Pra Todo Mundo (2011): Versão demo/artesanal desta canção pra todo mundo que estará no disco do “CoV, com lançamento previsto para a primavera!!!


Nei Lisboa E a revolução? (2001):



Quem seria o rei dos vândalos?
C. A. Albani da Silva
                
     Enéas e Virgílio encontraram-se numa praia de Cartago, por volta de 430. O sobrevivente troiano polia seu escudo enquanto o poeta romano lia os últimos panfletos de Santo Agostinho e Quodvultdeus: “os vândalos tomaram o norte africano, liderados pelo rei Genserico”!
    Quem seria este rei Genserico? Quem? Era tão difícil enxergar o rei destas feras bestiais. Mas os bispos não deviam estar enganados, tampouco os historiadores, havia de haver um rei entre os vândalos que de 428 a 477 infernizaram o Império Romano. Inclusive saquearam a Cidade Eterna (ou seria a Cidade Aberta?) em 455, pirateando todo o trigo, cuspindo nos cereais da Sicília.
    Todos fomos vândalos na Guerra de Troia, Virgílio. Gregos e troianos. E assim os romanos contra os cartagineses, contra os gregos e contra os celtas.
    Teu pensamento belicoso não me convence, Enéas. Tu falas pela língua das espadas e escudos e coturnos. Creio que ainda exista um corte profundo e claro entre civilização e barbárie.
    Como educar as “massas”? Me diga, como civilizar essa multidão de carentes, de camponeses, que anseiam pela liberdade mas saqueiam e agridem os Templos dos deuses, até mesmo o Circo? Não haverá outra pedagogia mais civilizada do que a do medo. Afirmo isto com o pesar de todos os mortos que trago comigo!
    Veja o que diz o bispo de Hipona: “os vândalos também são cristãos”. Não são católicos, Enéas. Mas cultuam o cristianismo ariano. Aquele que vê Cristo como um grande homem, mas não um Deus. E parece que os camponeses, pagãos em sua maioria, como eu e tu, guerreiro de Troia, aderiram a eles aqui na África. Enquanto Bonifácio, o governador, apoiou-se nos latifundiários. Mas estes também já fizeram um acordo, às escondidas, com os vândalos para, entre outras coisas, repartirem os tributos entre si: de Gibraltar a Túnis.
      Mas continuam os saques aos silos?
    Sim, até que Bonifácio caia haverá saque e terror pelas ruas, pois os latifundiários anseiam conhecer o novo governador, provavelmente um deles; os vândalos simplesmente se divertem e os camponeses ora temem pela sociedade que se esboroa ora esperam pela revolução.
    Quanto a mim, apenas desejo sinceramente que Santo Agostinho e esses bispos todos não denunciem a desigualdade social. Que negligenciem os bandos de escravos espalhadas pelo Império e a concentração de tantas terras nas mãos de tão poucos patrícios, coisas assim.
    Tu terias terra, grandes fazendas?
    Não. Mas os netos dos netos dos netos dos netos dos netos de Rômulo e Remo têm. Temo por eles. São donos de metade da Itália. A outra metade é das esposas deles.
    Ora, Enéas! Tu bem sabes que os bispos e o Papa jogaram a culpa na decadência moral dos governantes. No seu mau-caratismo, sua corrupção desavergonhada.
    Uhmm! Passou-se o tempo dos Irmãos Gracos não é mesmo, poeta? Do socialismo. Da esquerda e da direita...
    Não! Os vândalos cumprem o seu papel. Isto já é um sintoma de que estás enganado. No futuro, um poeta ainda há de perguntar o que fazer sem esses vândalos e outros bárbaros que tantas vezes nos assolam. Pois estes homens, ao fim e ao cabo, resolvem um problema para a “ordem”! Já não posso afirmar que o mesmo valha para a civilização...
    Que Roma então não dê lições ao mundo, Virgílio.
    Com estas palavras os dois se despediram. A água do mar já estava ficando fria.


Nei LisboaHein?!? (1988): 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Protestos nas ruas / Profetas nos livros

Cássio Loredano, Marx e Engels, 2007
           
            Em fevereiro de 2011, na Praça Tahrir, Egito, Mahmed, 22, conversava com o jornalista inglês Chris Orwell, 70, que viveu na Argélia durante a descolonização, em 1962, e participara também da rebelião jovem que sacudiu Paris e a França em Maio de 1968.
            [...] “Mahmed, os jovens franceses tomaram as ruas, prédios públicos, fábricas, praças a partir das universidades - Nanterre, Sorbonne, do bairro que era nosso reduto, o Quartier Latin: isso foi de uma ousadia inédita em meio ao conformismo da sociedade de consumo. E quando as centrais sindicais declararam greve geral, de 13 a 30 maio de 68, com cerca de 10 milhões de operários cruzando os braços, Charles De Gaulle e a elite francesa estremeceram. Metade do país ficou à espera da revolução, de alguma revolução; a outra metade (que depois também sairia às ruas aos milhares e elegeria um novo Congresso amplamente conservador) ficou assustada, desconfiada de tudo. Mas foi somente com a greve geral da classe trabalhadora que passamos de um levante essencialmente  simbólico e espontâneo, nascido da insatisfação universitária e atuando como um desabafo coletivo, para afetarmos diretamente a economia, ameaçando assim os privilegiados”.
               Enquanto Orwell fazia seu relato, a Praça Tahrir inteira cantava acerca da primavera, daquela, a Primavera Árabe, e de outras, passadas e futuras. A primavera não é apenas uma estação, mas um estado de espírito. Ao som de suas próprias palmas, 100, 120 ou 1120 rapazes e moças entoavam uma prece a Mohamed Bouazizi, 27, que tocou fogo no próprio corpo protestando contra o desemprego, a inflação, a falta de perspectivas, na Tunísia, em 2011. Começava assim a rebelião no norte africano e no Oriente Médio que derrubou velhas ditaduras.
            [...] “Em momentos como o que vivemos agora, Chris, lhe pergunto: optamos pelo realismo ou pelo romantismo”?
            Evitando respostas fáceis, Chris O. entregou a Mahmed um velho bloco de notas seu, já bastante amarelado. Na capa, um título: “Anotações de 1968”; no miolo, pensamentos manuscritos acompanhados de comentários entre parênteses...

Minhas leituras das leituras de Max Beer

“Autoridades de Jerusalém [...], os abrigos em que vocês confiam não são seguros; eles serão destruídos por chuvas de pedra, serão arrasados por trombas-d´água”.
Isaías, capítulo 28, versículo 17. (A rebeldia em estado bruto)

“Há uma desvantagem adicional à propriedade comum: quanto maior o número de proprietários, menor o respeito à propriedade. As gentes são muito mais cuidadosas com suas próprias posses do que com os bens comunais; exercitam o cuidado com a propriedade pública apenas quando isso as afeta de maneira pessoal”.
Aristóteles, Política, Parte II. (Sempre discordei desse cara, tipicamente de direita).

“Porque ele (o Pai) faz com que o sol brilhe sobre os bons e sobre os maus e dá chuvas tanto para os que fazem o bem como para os que fazem o mal”.
Sermão da Montanha, Jesus segundo Mateus, capítulo 5, versículo 46. (Deus, ainda irão longe as injustiças então? Há que se garantir ao menos o livre-arbítrio).

“A História é uma disciplina largamente cultivada entre as nações e raças. É avidamente procurada. O homem da rua e o povo vulgar aspiram a conhecê-la. Os reis e os chefes disputam-na”.
Averróis (Ao falar das lutas sociais na Idade Média, Max Beer enfocou os heréticos cátaros, mas preferi beber em outra fonte medieval: a sabedoria muçulmana).

“Foi Utopus (o mesmo que rebatizou a ilha de Abraxas como Utopia) que elevou homens ignorantes e rústicos a um grau de cultura e civilização que nenhum outro povo parece ter alcançado atualmente”.
Tomás Morus, A Utopia. (A esperança de que a democracia se aprende e se ensina).

“Empunharam, à guisa de bandeira, a trouxa de mendigo do proletário, para conclamar o povo à sua volta. Mas todas as vezes que este dispunha-se a segui-las, divisava-lhes nas costas os velhos brasões feudais e então se dispersava com gargalhadas insolentes”.
Marx e Engels, Manifesto Comunista de 1848 (Cumprem, a imprensa, a polícia e os políticos demagogos, atualmente, o papel que cabia aos aristocratas no século 19?).

Wado Reforma agrária do ar (2009): 

Wado Se vacilar o jacaré abraça (2007):

Wado Jejum/Cavaleiro de Aruanda (2011):

Wado Pavão Macaco (2009): 



quinta-feira, 13 de junho de 2013

Sobre Heróis e Líderes

Rosa Bonheur, Buffalo Bill, 1889


Revolução, revolta ou um simples protesto precisam de líderes fortes. Acaba-se com o antigo regime - o governante corrupto, o rei já sem poder; mas acaba-se também com os “niveladores” e “escavadores” que propõem redistribuir a riqueza, mas pouco fazem para isso, restritos a discursos ou ao enriquecimento pessoal. Ao menos foi assim na minha República, entre 1649 e 1660, na Inglaterra. Tudo começou quando o rei Carlos I quis enfiar goela abaixo o anglicanismo em terras escocesas e presbiterianas. E eu fui o líder forte, o Lorde Protetor, vindo do Exército a derrubar os conservadores, a eliminar os igualitários”.
(E-mail enviado por Oliver Cromwell a Luís XIV então criança em 1650 mas já querendo mandar)

Os motivos para uma revolta generalizada podem ser muitos: a falta de diálogo; o excesso de diálogo; a fome e a seca; a falta de liberdade; o excesso de liberdade; o desemprego e a inflação; mentiras repetidas que viram verdades; verdades que de tão distorcidas voltam a ser translúcidas até ao mais cego dos mortais; mulheres e livros; mas, sobretudo, a revolta parte de uma ideia ou sentimento de que “morrer não é nada; não viver é que é horrível”!
(No tuítter de Jean Valjean com dedicatória ao miserável Vitor Hugo em 1862)

Soul II Soul Back to Life (1989): 

Depeche Mode – Enjoy the silence (1990)


O que faz um líder? Lidera, oras. Mas como se lidera? De preferência protagonizando ações a partir do que se conhece bem – como eu: filho e neto de marinheiros, naveguei mares e rios da Europa e da América do Sul em nome de boas causas. Assim como, um líder começa liderando seus amigos mais próximos - aqueles que comungam dos mesmos ideais ou apertos: em meu caso, as ideias republicanas de Giuseppe Mazzini e o exílio político no Brasil em 1836. Mas acima de tudo, um líder não pode ser apenas um guerreiro. Vejamos o caso de Davi Canabarro, na Guerra dos Farrapos, que foi talentoso em combate, mas arrogante e autoritário na paz após a conquista de Laguna durante a República Juliana de 1839. Mas como dizia, a principal virtude de um herói, ou melhor, líder (estou tentando ser modesto!), é não perder a esperança! Quando meu lanchão, Seival, naufragou na barra do rio Araranguá, na expedição a Santa Catarina, com os farroupilhas, perdi meus maiores parceiros, brilhantes corsários: Carniglia, Starderini, Mutru – morreram todos afogados. Perdi também a guerra, já que em Imbituba os farrapos foram expulsos da província sitiada e voltaram ao Rio Grande do Sul pra continuar sua luta regional, igualmente fracassada, contra o Império brasileiro. Mas eu, particularmente, saí vitorioso de tudo isso: ganhei uma bela morena catarininha - Ana Maria de Jesus Ribeiro, minha Anita Garibaldi. Viveu tão pouco, a morena, mas tão intensamente... Lutando ao meu lado... Me amando... Não me considere um individualista a pensar só em meu umbigo por causa do amor! Entenda minha situação: já que dediquei minha vida a lutar pela liberdade dos povos, por governos republicanos, nada mais justo do que a busca e a conquista da felicidade pessoal. Um direito essencialmente moderno e que deve ser garantido pelo Estado laico e democrático que ajudei a inventar.
(Escrito nas areias de Marselha por um Garibaldi já meio caduco aos 75 anos de idade em 1882)

O Garibaldi sempre foi um exagerado”.
(SMS enviada em 2013 por Anita ao Albani após um cruzeiro pelo Mediterrâneo com a amiga Angelina Jolie que a interpreta no longa “Dois Mundos, Uma Heroína”)

“Para quem defende a ordem, a desordem sempre pode ser útil. O espírito carnavalesco, a anarquia cômica, o burlesco são coisas que podem reforçar o senso comum e costumam agradar às massas, acalmando-as mais até do que a porrada e o medo. Tinha isso em mente quando criei meu espetáculo sobre o “Velho Oeste Selvagem” em 1883 – renovava então a estética circense com suas acrobacias (utilizando-me de cavaleiros e pistoleiros) assim como valendo-me de excentricidades para cativar o público: mulheres masculinizadas como Jane Calamidade; árabes, cossacos e mongóis; e índios americanos como você, Touro Sentado – diga-se de passagem você nunca viveu tão bem quanto nos anos de Wild West Show: longe das guerras por terra contra o General Custer e sua cavalaria, como lá em Little Big Horn, ou melhor ainda do que agora nesta seita mística que entrastes e que prega o extermínio do homem branco pelo próprio Cristo que voltará só não se sabe quando. Essas paranoias místicas ainda serão o seu fim, Touro Sentado! Enquanto você busca a salvação, índio velho, eu colho os louros de ser o precursor dos programas debochados ou sensacionalistas de auditório – que depois foram parar na TV: do Chacrinha ao Ratinho chegando ao Pânico. Sendo assim, líderes de verdade na história atual somente os empresários, os empreendedores, que enriquecem e sabem ganhar no jogo da vida”.
(Mensagem telepática enviada por Buffalo Bil a Touro Sentado depois que este mugiu e levantou em 1890) 


Depeche Mode Personal Jesus (1990)


Soul II Soul – Keep on movin´(1989): 



quinta-feira, 6 de junho de 2013

Ingenuidade = Simplicidade?

Andy Warhol, Cifrão, 1981

 Um conto e uma crônica com sabor rural na "Semana do Meio Ambiente"...

O presente
(Paula Luersen*)

Domingo. Tarde.

- Mãe!
- Hum?
- Mãe posso falar com a senhora?
- Sim, sim. Tô escutando. Só não posso parar de mexer a geléia. Tá no fogo e pode queimar.
- Tá. Lembra que a senhora falou que quando eu decidisse o que ia querer de presente de aniversário eu era pra falar?
- Sim.
- Eu decidi hoje!
- Hum.
- Mãe. Eu quero uma calopsita!
- ...
- É só isso que eu quero ganhar.
- Acho que eu não escutei direito. Tem que mexer aqui ou gruda no fundo da panela...
- Eu quero uma calopsita. A Adriana tem uma que ela ganhou do pai e da mãe dela. É tão bonita! Tem que ver! Mãe? Tá pronta a geléia? A senhora parou de mexer. Mãe?
- Ah. Sim. Mexer. Tem que mexer. Pode queimar. Filha, você tem certeza que é isso que você quer de presente?
- Sim mãe.
- Hum. Busca o outro tacho pra mim.

Domingo. Noite.

- Genésio...
- Quê?
- A caçula veio me dizer hoje que já decidiu o presente de aniversário.
- Ah sim. Faltam poucos dias. O que a pequena quer?
- Uma calopsita.
- ...
- ...
- O que ela quer?
- Uma calopsita! Igual da Adriana, a amiguinha dela.
- ...
- Você compra quando for pra cidade?
- Cada uma. No meu tempo, Cilda, a gente ganhava peão, bolita, carrinho de rolimã!
- Qual o problema dela ganhar uma calopsita? Deixa a menina!
- Mas e ela não falou em outra coisa?
- Não. É só isso que ela quer.
- É que é caro. Muito caro! Amanhã eu vejo isso lá na cidade então.
- Boa noite.
- Boa noite.

Domingo. Madrugada.

- Cilda?
- Quê?
- Você ainda não dormiu?
- Não. Pelo jeito você também continua acordado.
- É.
- Genésio...
- Diga.
- Você pode me dizer o que é uma calopsita?
- ...
- Genésio!
- Ah Cilda! Não sei te explicar exatamente.
- Mas tenta.
- Aaaai que sono!
- É só dizer o que é.
- ...
- Gené...
- Tá bom Cilda!  Eu não faço idéia do que é essa coisa!
- Você disse que era caro!
- Calopsita! Só pode ser caro! Deve ser um daqueles brinquedos modernos que rodam, cantam e tem luzinhas. Por que você não perguntou pra pequena quando ela falou que queria?
- É que ela me disse que os pais da Adriana compraram uma. A Adriana é aquela menina que mora lá na cidade. O pai dela é doutor que cuida das vistas e a mãe é professora. Não queria que nossa caçula pensasse que a mãe não sabe o que é o que ela quer de presente.
- É verdade. Ia parecer que a gente não sabe de nada.
- Sim! Sim. Eu penso que deve ser uma jóia, que nem esmeralda, rubi. Imagina. Brincos. Um anel de calopsita!
- Quando você falou, eu pensei logo que era peça de carro. Não entendo muito de carro, mas lembro que o Antônio vendeu o dele por causa dos problemas no motor, no carburador. As calotas tavam velhas e se não me engano era a calopsita que também tava falhando.
- Mas pra que ela ia querer isso Genésio?
- Pois é. Vai ver ela inventou um nome!
- Não. Ela disse que a Adriana tinha uma toda bonita. As duas saíram pra brincar e ela voltou hoje com essa história.
- Ah... Acho então que deve ser uma boneca. De brincar? Bonita? As crianças nessa idade brincam de boneca!
- É. Parece. E como a gente vai ter certeza?
- Amanhã eu vejo isso na cidade. Não vou sair perguntando claro, mas dou um jeito. Vai ver é uma boneca que lançaram agora. Acho que é.
- Vou fazer umas perguntas pra pequena amanhã. Se for um novo modelo daquelas Barbies, Paquitas, eu descubro...
- Boa noite.
- Boa noite.

Segunda-feira. Manhã.

- Quero pão com geléia mãe!
- Sim. Espera que a mãe tá fazendo.
- Huuuum... tá um cheiro bom!
- Filha. Você nem me contou como foi lá na Adriana. Brincaram muito de boneca?
- Sim mãe. A gente brincou bem bastante.
- E a calopsita, hein? Como é a da Adriana?
- Mãe! Tem que ver. É azulzinha com branca. Bem bonita!
- Azul?
- Sim, ela até canta!
- Nossa. Que moderno...
- A gente ficou rindo que ela é toda arrepiada. Fica engraçado quando ela voa.
- Voa???

Segunda-feira. Noite.

- E então Cilda? Descobriu?
- Prefiro não falar sobre isso Genésio.
- Por quê? É o presente da nossa caçula!
- Se for mesmo uma boneca, como você disse, ela é toda arrepiada. Canta. E mais. Ela voa. Voa Genésio!
- Isso deve custar uma nota.
- Sim, deve vir com controle junto. Que nem o carrinho do Felipe. Lembra? Virava até cambalhota. Aquele aniversário nos custou caro. Você não soube de nada na cidade?
- Fui numa loja de brinquedos e nada. Quando era a hora do intervalo lá na fábrica pensei que quem sabe podia ser uma bicicleta! No meu tempo tinha Calói! Mas não era.
- E essa agora! Já viu bicicleta que voa?
- Mas eu não sabia ainda que a coisa tinha que voar Cilda!
- Pois é. É verdade.
- ...
- ...
- Voa. Canta. O que mais que ela disse mesmo?
- Que era azul com branca.
- ...
- ...
- Isso até parece passarinho...
- É. Só que... pedir um passarinho de presente de aniversário?
- É. Não pode ser. É cheio de passarinho por aqui. As crianças até já acostumaram, nem prestam atenção neles. É que pra cantar. Voar!
- Hoje em dia tem cada brinquedo. A gente nem acredita.
- Amanhã eu vou de novo na loja então. Dou um jeito. Prometo que acho e compro a calopsita! Mas tem que vir com o controle!
(*Paula Luersen é Mestre em Artes Visuais pela UFSM)


The ReplacementsBastards of Young (2006):


Café TacubaOlita Del Altamar (2013): 


Leia com os olhos fechados
(Claiton Manfro *)

O vento era suave e constante, as folhas do cinamomo caíam lentamente, a fumaça que saía da água do chimarrão embaçava a visão da várzea, mal dava pra enxergar o açude e o gado que descansava do pastar.

Perto do poço, na frente do galpão, um cachorro dormia sossegado e as galinhas, na eterna rotina de procurar minhocas, cacarejavam displicentemente. Era hora da cesta, todos e quase tudo dormia, mas eu, acordado, registrava tudo com um olhar bucólico e saudoso.

Nem os anús, que pousavam nas bananeiras, faziam barulho.

Tirei as alpargatas e resolvi caminhar pelo cenário, fiz a volta na casa, passei pelo galinheiro, o chiqueiro e parei ao lado do cata-vento, no lugar mais alto do pátio. Sentei em um velho tronco de figueira, o cheiro que vinha do campo me distraia tanto que nem sentia mais as rosetas nos pés. Fiquei ali por horas observando as formigas, as cigarras e as pequenas preás que atravessavam o terreno apressadamente.  

Mais tarde, depois de disputar as minhocas com as galinhas e organizar a pescaria, fui pra mesa do café. O pão fresquinho e a chimia de abóbora acompanhados do café com leite davam a sustância pra longa noite na beira do açude.

Não precisava pegar peixe, queria mesmo era pescar estrelas e silêncios. Sentando naquela taipa ouvindo o ronco dos sapos, o zunido dos mosquitos e o ruminar das vacas, também ruminei pensamentos.

Pensei que a lua é a irmã mais velha dos pesqueiros e pescadores / que os lambaris não crescem pra dar ar de criancice às águas doces / que todas as águas são doces, até as do mar / que o pão de casa e a chimia feitos por mãos maternas ganham grau de importância quando degustadas perto das mães / que no fundo os picumãs são farelos que os anjos deixam espalhados na cozinha / que o esterco do gado guarda mesmo o perfume das reminiscências – das lembranças imortais e que a vida não passa dum pescar.
(*Claiton Manfro é Diretor do CISCO Teatro, ator e pesquisador)


Quinteto VioladoPalavra Acesa (2011): 



Gui AmabisTiro (2012):