sexta-feira, 31 de maio de 2019

QUEM NUNCA RECEBEU UMA BÍBLIA DO GIDEÃO?



QUEM NUNCA RECEBEU UMA BÍBLIA DO GIDEÃO?

Quem nunca teve uma aula interrompida na escola pública para receber seu exemplar da Bíblia do Gideão? Os gideões são aqueles tiozinhos simpáticos, que chegam como alguém que não quer nada, senão pisando em ovos mesmo, mas te contam uma poderosa receita de bolo: que um dia estiveram estropiados na vida, mas viraram empresários, ainda que micro, muito bem-sucedidos, tendo uma família bonita, de filhos que não repetiram seus erros na juventude e hoje são lindos, inteligentes e fortes como eles não foram. Por isso os gideões distribuem gratuitamente a Bíblia, ou trechos dela, aos jovens cabeças de vento que habitam as nossas escolas.

O Gideão que lhes inspira é um desses clássicos heróis do Antigo Testamento bíblico, com uma história perfeita para educar as criancinhas: o Gideão original estava lá no Oriente sovando farinha de trigo quando um anjo veio e lhe mandou escorraçar as tribos pagãs que incomodavam os hebreus na sua época de antigamente.

O moço então convocou 300 guerreiros, escolhidos porque invés de beberem água que nem gente no rio Jordão eles beberam a água do rio que nem cachorros (a lambidas, entenda-se). Depois, eles assustaram os inimigos com um jarro que tinha fogo dentro e não água! Pois é, daí foi só a pancadaria que rolou solta. Inclusive, Gideão, o filho de Joás, da tribo de Manassés, com seus guerreiros, arrebentou com os chefes das gangues rivais, tanto do deserto quanto as ribeirinhas, esfolou e decapitou a rapaziada inimiga de boas. Assim, Gideão ficou 40 anos sendo o mais poderoso da sua região. Teve muitas esposas e uma amante, com 70 filhos para criar.

Veja como os homens de antigamente eram muito mais honrados mesmo: hoje em dia um machão teria 70 amantes mais uma esposa, e, provavelmente, não assumiria nenhum filho. Enfim…

Você pode ler essa história melhor lá em JUÍZES, capítulo 6, e seguintes, do Velho Testamento hebraico. Resumir a Bíblia é muito difícil porque ela já é um resumo. Se muito cristão se desse conta disso, tinha muito padre e pastor desempregado, por aí, atualmente.

Infelizmente os gideões não colocam o capítulo de Gideão no livrinho azul-escuro que distribuem pelo mundo que é quando a Bíblia vem traduzida em outras línguas que não o inglês deles (dos gideões). O livrinho de bolso desses missionários, portanto, vem assim “só” com o Novo Testamento mais os Salmos de Davi e os Provérbios do rei Salomão.

Mas da onde vieram esses gideões internacionais, que imprimem essas mini Bíblias e espalham elas aos quatro ventos em muitas línguas? Eles surgiram em 1899 nos EUA. Ao menos é o que conta a própria lenda deles! Foi lá no Wisconsin. Curiosamente a sede deles agora fica na terra da música country: Nashville.

Mas vejam que coisa braba é você pesquisar sobre os cidadãos que criaram os gideões. É difícil encontrar bons livros ou páginas de internet sobre eles. Todas as fontes falam só que três homens, comerciantes do Noroeste dos EUA, levaram o crédito. Mas seus nomes se embaralham com o de outros homens com nomes parecidos, igualmente evangélicos e empresários poderosos na América do Norte da virada do século XIX pro século XX.

Um deles, chamado Samuel Hill, ou Sam, para os íntimos, eu pensei inicialmente que tinha vivido entre 1857 e 1931. Que tinha sido um advogado dos trens que cortavam o Oregon, nos EUA, nessa época da II Revolução Industrial. Pensei que sua família era de quacres, aquela sociedade de amigos de Jesus que sonhava com uma democracia espiritual na Inglaterra do século XVII e, em 1656, chegou a Boston, corrida pelos reis ingleses. Pensei que esse tal Sam Hill era o que tinha trabalhado com o seu papai, mas que depois de um tempo ambos se desentenderam e o Sam fez fortuna como o grande precursor das estradas asfaltadas pelo interior dos EUA. Consta que disse inclusive assim, uma frase bem famosa: “Boas estradas são mais do que um passatempo, são a minha religião”. E fiquei pensando se isso não era pecado, mas não levei adiante esse pensamento porque sempre encontramos justificativas pra tudo quando queremos olhar as nuvens digo ler a Bíblia.

Pensei que esse Sam Hill, o grande empreendedor, foi quem vendeu, em Seattle, gás e luz elétrica pro povo. Que viajou dezenas de vezes pela Europa e até pelo Japão. Que construiu um rancho chamado Maryhill, em Washington, onde ergueu um Arco pela Paz entre os EUA e o Canadá, um Museu de Arte e até uma réplica do Stonehenge (aquelas pedras antigas dos celtas e dos gauleses que habitavam a Grã-Bretanha). Jurava que, pronto, aí estava o primeiro grande gideão internacional. Qual nada! Este Sam Hill existiu bem assim, conforme escrevi acima. Mas que raio, descobri em seguida, não sem mil horas de leituras!, lá numa quase perdida reportagem de 1936 do jornal The New York Times, digitalizada e tudo, que esse Samuel Hill, embora bem parecido com o outro, não era o homem que eu queria. O meu homem era SAMUEL E. HILL (1867-1936), o verdadeiro que aparece nos anais dos próprios gideões como um seu fundador, mas que quase não se encontra mais nada de interessante nem relevante na selva digital que é a internet.

Os outros dois gideões, de acordo com outro famoso jornal norteamericano, desta vez, o jornal Washington Post, descubro eu ao ler em reportagem, sem data, no portal desse jornalão, que foram JOHN NICHOLSON (1858-1946), um vendedor de alumínios que em 1899 topou, na cidade de Boscobel, no Hotel Central desta cidadezinha, com o Sam Hill. Este que viajava também a negócios no mesmo lugar e hotel e época e eu confundi com o outro cara que tinha uma puta biografia. E eu pensei, caramba, o homem ainda espalhou mil Bíblias pelo mundo... Mas eu estava enganado, como já disse.

No quarto 19 do hotel de Boscobel, desde 1987 fechado, porque em ruínas, em meio a uma noite chuvosa, foi que John e Sam se recolheram aos seus quartos, ambos foram os únicos dois homens religiosos da ocasião que se puseram a rezar em meio a uma algazarra, as beberagens e à folia dos outros hóspedes. Assim os dois fizeram um pacto para espalhar Bíblias pelo mundo. Ainda arregimentaram depois, em um segundo encontro, um tal WILLIAM KNIGHTS (1853-1940) que buscou no Gideão dos Juízes hebreus o modelo de obediente evangélico conquistador.

Aliás, os gideões só aceitam homens como protagonistas em suas pregações nômades, inclusive também eles não aceitam católicos. Consta na Wikipédia que já são mais de 2 bilhões de Bíblias que eles distribuíram. Em 93 anos de missão, metade desse número foi alcançado, e, em apenas 14 anos, a outra metade.

O livrinho que, só na sua casa, adivinho, deve ter uns cinco, é impresso na Pennsylvania, nos EUA, com edição da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, grupo de editores bíblicos original da Inglaterra de 1831. E a tradução é de João Ferreira de Almeida. Mas se eu for te contar sobre este tradutor português, nascido em 1628, que trabalhou para o Império holandês no Ceilão e na ilha de Java, na Indonésia, que faleceu em 1691, sem concluir a tradução do Velho Testamento, mas tendo feito a mais lida das traduções protestantes do Novo Testamento para a língua portuguesa, rapaz, eu ia começar outra crônica enorme pois vai uma longa e misteriosa história. Saber quem ele foi é tão difícil quanto foi, para mim, estudar os três primeiros gideões internacionais.

A trilha sonora para esta crônica fica a cargo dos Beatles: em 1968, o Paul McCartney cantou na canção ROCKY RACOON sobre um caipira de Dakota que tomou um dedaço nos olhos quando sua esposa Magill fugiu com outro cara, chamado Dan. Rocky foi de atrás dos dois, louco de raiva e armado. Encontrou em uma cabeceira, no quarto do hotel, onde se hospedou, ao lado do quarto do casal de traidores, uma Bíblia do Gideão e não deu a mínima. Pois a única ideia dele era meter bala nas pernas dos dois canalhas. Mas Dan, o garanhão, foi também mais ligeiro no revólver e baleou o Rocky primeiro. Estirado de volta na cama do seu quarto pelo doutor que trabalhava por ali e gostava de mandar ver numa garrafa de gim, por isso sempre com um famoso bafo e um perfume etílico, o Rocky se agarrou na Bíblia dos Gideões e disse ao médico, “saindo dessa, dotô, sairei renascido”. Se referia ao livrinho, creio eu.

Sem mais, dedico este preguiçoso exercício de jogar conversa fora ao Sábio de Voltaire (1694-1778), o grande escritor francês que anotou em seu DICIONÁRIO FILOSÓFICO de 1764: “Se a nossa santa religião foi muitas vezes corrompida por esse furor infernal, a loucura dos homens é a principal responsável”.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)


quarta-feira, 29 de maio de 2019

LIVROS de VIAGEM #51



LIVROS de VIAGEM #51
* Aos geógrafos do imaginário

Pensamento da Sylva costuma se encontrar com o Prof. Linduarte Cantor, o músico Tremenda Luz e o jegue Nick Nivaldo para conversarem sobre seus LIVROS de VIAGENS prediletos.

Todos concordam que a vida é uma viagem. E que tem gente que viaja na maionese, facilmente. E que bater perna pelo mundo é muito inspirador. Todos eles gostam de desenhar mapas. Mais ou menos inventados. Mais ou menos coloridos.

Prof. Linduarte inclusive se recorda, não sem grande desapontamento que, o primeiro livro de história e geografia que leu com tesão, e muito lhe marcou a vida, era uma grande viagem pela aventura da arqueologia: desde quando a Turquia foi escavada, em 1872, atrás da antiga Troia, passando pelo Iraque da Torre de Babel até o México dos astecas, enfim, era um livro muito bem escrito, mas que foi obra de um autor nazista: que desgraça! Sim, DEUSES, TÚMULOS e SÁBIOS (1949) foi o livro feito por um tal C. W. CERAM que era pseudônimo criado justamente para encobrir o passado do senhor Kurt Wilhelm Marek (1915-1972). O cara foi, por anos, do departamento de publicidade e propaganda de Hitler! E é difícil acreditar que, quando acabou a II Guerra Mundial, ele tenha se arrependido da visão política de extrema-direita: ultracapitalista, autoritária, fanática em nome da sua pátria, da sua “raça” (não existem raças humanas, porra!) e do macho viril-militar que, vira e mexe, tenta conquistar o mundo, geralmente fingindo que não é nada disso, mas que é um bom cristão. Ceram foi o primeiro editor, em 1959, de um livro, o diário de uma alemã estuprada (Marta Hillers), chamado UMA MULHER em BERLIM, que atacava o Exército Vermelho, ou seja, falava mal dos soldados da Rússia comunista soviética que derrotaram o nazismo em 1945.

Pensamento da Sylva, vendo a decepção do Professor ao lembrar de uma marcante leitura juvenil, que revelou ao adulto um autor que lhe traiu profundamente, resolveu então trocar de assunto e lembrou que, em 1936, o presidente Getúlio Vargas criou o IBGE justamente em 29/05, por isso a comemoração do dia do geógrafo nesta data. Assim, a partir de 1940, o Brasil passou a ter um censo a cada dez anos mapeando o povo e o território nacional. Mas qual o livro de viagens que você recomenda, Da Sylva, ao caro leitor que nos lê? Retomou, mais sereno, o Professor Linduarte.

Pensamento da Sylva escolheu uma obra religiosa. Mas que também é exercício de ficção científica pura. Muito antes de Júlio Verne e H. G. Wells, no século XIX, criarem o estilo sci-fi, viajando à Lua e ao ano 802701 d.C., o padre ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697) foi um jesuíta português que catequizou (mesma coisa que evangelizar) o Brasil Colônia, escrevendo famosos SERMÕES e CARTAS que viraram clássicos da arte barroca na América Latina. Ah! Como toda viagem é uma viagem no tempo, eu indico o Vieira quando ele deu uma de profeta e, no livro póstumo, HISTÓRIA do FUTURO (1718), o moço resolveu narrar o dia em que o Portugal fosse dominar o mundo: um Quinto Império mundial (depois dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos). O padre estava empolgado, já que os portugueses na época dele estavam colonizando o Brasil, a África, a Índia, a China, o Japão e até o Timor. Embora otimista, o moço teve que dar muitas explicações para a censura religiosa no Tribunal da Inquisição. Coisa de briga política entre as seitas jesuítas e os dominicanos, entre colonizadores, escravocratas e padres na colônia, por causa dos índios, entre cristãos e judeus, lusos, castelhanos e holandeses nos reinos europeus.

Não é católico o meu amigo Pensamento da Sylva, mas ele sabe que todo futurista tem a cabeça no passado e todo o viajante no tempo viaja também no espaço, porque só no espaço existe o tempo e vice-versa. O espaço também é um lugar imaginário feito dos afetos, das lembranças, das práticas, das limpezas e sujeiras com que ocupamos as paisagens naturais, rurais ou urbanas do mundo.

Veja o Padre Vieira: sonhava com o futuro ele mesmo viajando pelas águas do oceano Atlântico entre Portugal e o Brasil (e o cara andou pelo Brasil por mais de 50 anos: por terras do Norte e do Nordeste, colônia adentro), mas viajava ainda mais no tempo mágico da sua cabeça, lendo as trovas do sapateiro e profeta popular Gonçalves BANDARRA (1500 – 1556) que dizia que Dom Sebastião voltaria não só como o rei de Portugal, depois de sumir no Marrocos em 1578, brigando com os muçulmanos, mas voltaria para governar todo o planeta. Assim como, encontrava nas antigas SIBILAS romanas (mulheres como Eritreia e Cumas que viam o futuro na Roma Antiga) e na poesia do famoso poeta VIRGÍLIO, também ele romano da Antiguidade, pistas para o futuro do seu povo português. Estava perfeitamente claro na cabeça do Padre Antônio Vieira também que, o dia de amanhã, para o reino de Portugal, aparecia escrito até no livro do profeta Isaías, da Bíblia, com sua pena de hebreu que viveu 700 anos antes de Cristo lá no Oriente Médio sem nem saber de Portugal bosta nenhuma, na época, terra de celtas e gauleses.

Nick Nivaldo compreendeu que o sonho de viajar para o futuro é, realmente, desejo antigo e profundo em muita gente. Burra ou inteligente, tanto faz, sagrada ou profana, não importa. Porém, para ele, viagem maior não há, e mapa algum um dia ficará completo, enquanto a viagem maior não for a do AMOR. Todos concordaram com o jegue que o amor é viagem sem volta.

Nivaldo trouxe, então, para a conversa, o livro DIÁLOGOS de AMOR, do médico judeu LEÓN HEBREO (1460-1521), perseguido pelos cristãos por seu judaísmo, que viveu em Portugal, na Espanha e na Itália. Era da família Abravanel, que já era, no Renascimento europeu, formada por burgueses e burocratas, no tempo do reino de Castela.

Para León, o amor é a motivação, a sustentação e o fim de todas as viagens. Ou seja, é ele o que nos motiva a cair na estrada da vida, a seguir caminhando mesmo com os pés cansados e a única recompensa plena da vida é o amor. Tremenda Luz alfinetou o pensamento platônico, portanto idealista, de León e, por conseguinte, do jegue Nivaldo, dizendo: pois é, mas cada um tem um amor diferente, não é mesmo? Um homem, uma mulher, os filhos, a profissão, a religião, os vícios, o poder, o dinheiro… Outros amam viajar, por exemplo! Respondeu o jegue.

Mas foi o cantor Da Luz quem continuou a palestra: minha última viagem agora foi viajar com o primeiro grande escritor da América Latina: Inca Garcilaso de La Vega. Ele fez a grande viagem que, quase todos nós, nascidos entre o Alaska e a Terra do Fogo, ou seja, entre quem vive no continente americano desde 1500, tem de enfrentar na vida.

INCA GARCILASO de LA VEGA (1539-1616) foi metade conquistador e metade conquistado. Era filho de Sebastião, um nobre do império espanhol com uma princesa do império inca, a bela Chimpu Ocllo. Nasceu na cidade de Cuzco, no Peru, no tempo em que Francisco Pizarro atacava os índios governados por Atahualpa. Curiosamente, seu pai muito tentou voltar para a terra natal, na Europa, mas não conseguiu. Por brigas políticas, entre os próprios colonizadores espanhóis, foi proibido de retornar e assim morreu na América. Já o escritor Inca Garcilaso de la Vega foi quem voltou para a Espanha atrás de metade do seu passado, dos estudos e das posses da família. Lá escreveu dois livros importantes: FLORIDA del INCA, em 1605, sobre Hermano de Soto e Juan Ponce de León, outros dois conquistadores e viajantes espanhóis da América, como o seu velho pai tinha sido. E, principalmente, escreveu o livro COMENTÁRIOS REAIS onde, entre outras coisas, ele explica o povo inca aos europeus. Aliás, o autor viveu a maldição reversa do pai: queria voltar para o Peru e desgraçadamente nunca conseguiu.

Garcilaso não era bobo, querido leitor. Ele foi criado pela mãe, portanto, ele sabia falar bem a grande língua dos índios da Cordilheira dos Andes: o quéchua. Inclusive sabia fazer os nós do quipu: o genial sistema de escrita e de cálculos dos índios andinos feito com fios e cordões. Para ele, os incas seriam os romanos das Américas e estariam prontos para receber o povo espanhol e sua fé cristã, já que adoravam o Sol, a Lua e a Serpente Emplumada, de um jeito não muito diferente dos europeus que falavam em Deus Pai, Deus Filho e Espírito Santo.

O problema dessa viagem, a da colonização moderna dos europeus por aqui, na América colonial, começada com Colombo em 1492, foi um problema de tradução para o Inca de la Vega: os tradutores incas, assim como, os tradutores espanhóis, distorceram os discursos dos viajantes e dos nativos indígenas, assim, tudo acabou em briga generalizada e desentendimento, entre eles, desde então.

Prof. Linduarte Cantor serviu chá quente de hortelã e chá de macela a todos os presentes. Depois lembrou que foi o Inca Garcilaso de la Vega quem traduziu do italiano toscano, para o espanhol castelhano, o livro sobre o amor medieval de LEÓN HEBREO, o mesmo que o jegue Nivaldo havia lido e comentado antes.
O Professor concluiu dizendo assim: todo bom geógrafo do imaginário sabe muito bem que não existe maior viagem do que a viagem da leitura.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)

sábado, 25 de maio de 2019

SARAU VIRTUAL



SARAU VIRTUAL
#3
O sarau virtual não pode parar
Porque a poesia é a única coisa concreta da vida!
Chico Buarque conquistou o Prêmio CAMÕES 2019
O mais importante prêmio literário
De língua portuguesa no mundo
Desde 1989
Chico é o primeiro cantador a vencê-lo
O CoV também canta Chico
(Apesar de eu nunca tirar
(Todas aquelas notas complicadas
(Que o moço inventa pra suas músicas!)
A gravação é um exercício no ACÚSTICO MARESIA
Lá na Praia de Baunilha, verão 2014
O texto do Chico
É com o mestre do teatro brasileiro: Augusto Boal
E fala sobre a estupidez de ser machão
Vuuuuush

Mulheres de Atenas
Chico & Augusto, 1976

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos
Orgulho e raça de Atenas

Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem imploram
Mais duras penas; cadenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos
Poder e força de Atenas

Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam, sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas, obscenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos
Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar um carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas, Helenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas:
Geram pros seus maridos,
Os novos filhos de Atenas.

Elas não têm gosto ou vontade,
Nem defeito, nem qualidade;
Têm medo apenas.
Não tem sonhos, só tem presságios.
O seu homem, mares, naufrágios...
Lindas sirenas, morenas.

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos
Heróis e amantes de Atenas

As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos
Orgulho e raça de Atenas


#2
No sarau virtual
Em que 
Léris Seitenfus
Me engajou
O poema de hoje
É uma tradução livre
Para uma canção
Do aniversariante do dia (24/05)
BOB DYLAN
O trovador faz 78 anos
Cantemos:

OUTRA TAÇA DE CAFÉ
Bob Dylan por Inventor do Vento
Seu hálito é doce
Seus olhos são duas joias do céu
Cintura fina, cabelo macio
Sobre o travesseiro em que te deitas
Mas de ti não recebo afeto
Nenhuma gratidão ou amor
Sua lealdade não é para mim
Mas para as estrelas nas alturas
Outra taça de café antes de cair na estrada
Outra taça de café antes de partir
Para o vale que vem abaixo
Seu pai é um fora da lei
Andarilho metido em negócios
Ele vai te ensinar a fazer as escolhas certas
E a como manejar espadas
Ele supervisiona seu reino
Então estrangeiro nenhum adentra
Sua voz ecoa quando ele pede
Por outro prato de comida
Outra taça de café antes de cair na estrada
Outra taça de café antes de partir
Para o vale que vem abaixo
Sua irmã enxerga o futuro
Como sua mãe e você mesma
Nunca vais aprender a ler e escrever
Não existem livros na sua estante
Seus prazeres não conhecem limites
Sua voz é como o canto da cotovia
Mas seu coração é um oceano
Misterioso e profundo
Outra taça de café antes de cair na estrada
Outra taça de café antes de partir
Para o vale que vem abaixo


#1
A poeta Léris Seitenfus
Me botou na roda
De multiplicar poemas
Por três dias, no mundo virtual
E convidar três poetas
Pra essa brincadeira:
Bem, vou de 
Edvaldo Santana
De 
Júlio Alves
E de 
Ronaldo Corrêa
Claro, o primeiro poema
É da própria Léris
Musicado em 2014
Por mim
Para o lançamento de
Seu livro: GRITO SEGREDOS
Vuuuuush
P.S.: Se os meninos puderem
Girem a roda pra frente
Na mesma batida

A ÚLTIMA ESPERANÇA
(Léris Seitenfus)
Busco nas lamparinas
solitárias da noite
um pouco de ti.
Nas úmidas faces da Lua
um tanto de ti.
Nas ruas sorumbáticas,
vejo desertos e miragens
um infinito de ti.
Sou vulto em decadência
em cacos de solidão
vagando no solo infértil
pela cidade vazia.
Agarro mãos fantasmas
por medo do escuro
soletro cânticos, uivastes
no coração torto
quase morto...





quarta-feira, 22 de maio de 2019

DE BRINCALHEIRA



DE BRINCALHEIRA
é uma antimúsica muito séria que fiz para apresentar alguns dos personagens que venho trançando no balaio de mentirinhas do CAVALGANDO o VENTO (CoV):

MOLEQUE do ESPAÇO: Filho de uma astronauta com um extraterrestre. Quando ele não está escrevendo crônicas cósmicas sobre Marte e os marcianos, ele vive no mundo da Lua.

VIDENTE XALALÁ: Sua bola de cristal deu tilt há muito tempo, por isso ele só prevê o que já aconteceu.

MÃE NANA: Desde 2014 eu passo a limpo o seu caderno manuscrito onde fala da vida dos 140 filhos que teve. Ela ama ouvir blues, música brega e samba. Há quem diga que está grávida de novo. Espero que dessa vez me convide para ser o padrinho.

PROF. LINDUARTE CANTOR: Das muitas coisas que ele pesquisa, gosto das suas listas de artistas, músicos e escritores, ente outros, desconhecidos, que ele resgata do grande sucesso que é não fazer sucesso nenhum. O método pedagógico deste professor é o desaprendimento. Assim: tente desaprender a cantar. Tente desaprender a escrever. Tente desaprender a andar de bicicleta. Isso é fácil, é só o começo. Daí depois tente desaprender os seus preconceitos, seus medos, seus ódios, seus juízos. Aí a coisa começa a ficar séria.

TREMENDA LUZ e o JEGUE NICK NIVALDO: Ninguém sabe, nem eu, se o segredo das viagens no espaço-tempo desta dupla caipira futurista está nas 10 cordas da viola de Luz, no chapéu do mesmo cantador ou no esturro do jegue Nivaldo. Ninguém. Só sei que eles viajam recolhendo causos e histórias para contar cantando ou cantar contando: ó lá se foram de novo.

PÉGASO de PAU: Ele vive voando nas asas da sua BIRUTECA: a biblioteca dos livros mais birutas do mundo. Inclusive, foi ele quem organizou os 30 capítulos do meu primeiro livro, editado em 2016: CONTOS pra CANTAR do INVENTOR do VENTO. Nasceu nos CUS de JUDAS, cidadezinha que fica no vale do rio Gravataí e é campo de pouso para discos voadores da esquerda.

REPÓRTER ALMADA ALVES: Ele é especialista em entrevistas sobrenaturais, ou seja, entrevistas com gente que já morreu. Mas não fale com ele sobre psicografia, infernos ou paraísos que o talentoso jornalista é ateu. Os mortos falam de muitas maneiras, eles não precisam acordar do sono eterno para falar, acredita Almada Alves.

CORRESPONDENTE de GUERRA: Conheci este outro grande jornalista na festa de casamento do Conde Drácula com o Don Juan. Seu sonho é, um dia, ficar desempregado, por isso, toda noite ele reza para que se acabem todas as guerras do mundo. Não precisa nem falar que sua música predileta, dentre as minhas composições, é PAZ, AFINAL. Assim como, ele foi o meu informante na guerra que dizimou Gravataí e Cachoeirinha 3000 anos depois de nós, chamada pelos historiadores de GUERRA das BROMÉLIAS.

ESQUELÉTICO ESQUELETO: Mesmo traído pelo seu cão de estimação o Esqueleto não aprendeu nunca a morar sozinho e vive assim sempre em busca de novas e, geralmente, más companhias. Mas ele é um cara divertido, apesar de toda a tragédia.

JAMBORÉ JUCUNDÔ, O ANARCO VOVÔ: Aos 88 anos de idade saiu pelas ruas fazer a revolução com bombas de rosas e alecrim, com golpes de foice e martelo literários. Seus inimigos são os símbolos do capitalismo: o cifrão, o coturno, a cruz gamada.

BETO GATILHO: O maior jogador do futebol do Interior do RS que nunca jogou na dupla Grenal. Fundador do clube negro RAÍZES NAGÔ e amigo do estivador comunista PAOLO PIZZATO, aquele que, mesmo na merda, nunca pisava nos outros.

HOMO TARARAKA: É o último homem das cavernas. Ou seria o primeiro dos homens das cavernas urbanas modernas? Há quem acredite que ainda é apenas um adolescente. Ainda resolve seus problemas como uma criança. O que tem um lado bem ruim, pois, às vezes, quer bater com o tacape na cabeça dos outros. Mas ele desenha memes rupestres muito bacanas, entre eles o famoso #OCorvoNaNuvem.

FRANK LYNN FLUES: Já foi o maior ladrão da História. Até já me pediu para compor um livro sobre os seus grandes crimes. Por ora, anoto os livros que os donos do poder pediram pra que ele juntasse pela História e destruísse. Os fascistas vivem no encalço dos livros rebeldes. Curiosamente, Frank Lynn guarda sempre uma cópia dos livros que destrói na sua casa. Vou lá dar uma lida de vez em quando.

BLIND BARATA & FORMIGA McTELL: Músicos que se conheceram na construção da Estrada de Ferro Gravataí-Caxuxa e, antes de sumirem do mapa, um envenenado pela namorada ciumenta, o outro convertido à igreja das igrejas da melhor das igrejas, gravaram uma porção de lindas canções sobre amor, trabalho, alguns porres e livros lidos, não-lidos, relidos e meio-lidos

RITA MALDITA: A pior amiga da Girafa Elétrica e da Menina do Colar. Tão inconveniente e sem graça. Tão besta e metida como alguém que, você, certamente, conhece. Ainda assim, uma amiga. Diz que vai casar. Espero ser contratado pra cantar na festa.

O LÔKO DA GUITARRA: Vivia com problemas de saúde na infância. Super protegido pela mãe. Assim estava tudo escrito para virar um adulto hipocondríaco e cagão, até que um dia, num cabaré dançante tomou um copo com menstruação e voltou à realidade com um parafuso a mais e uma guitarra a tiracolo. Ícone da cena punk da Praia de Baunilha. É apaixonado por Madame Satã, um travesti que era capoeira no carnaval do RJ na Era Vargas e aprendeu a gostar de rock and roll na COHAB na Era Lula. Continuou sendo capoeira.

GIRAFA ELÉTRICA: Espevitada. Está sempre disposta a nos chocar, mas bem devagarinho, pra gente ficar pensando, só por isso mesmo. É o lado absurdo do mundo velho medonho maluco. Por que a vida está em algum ponto entre o lírico e o absurdo

MENINA do COLAR: É o lado lírico do mundo velho medonho maluco. Por que a vida está em algum ponto entre o lírico e o absurdo. Depois da Praia de Baunilha, sonha em viajar pela Toca da Jiboia, terra de malfeitores, e pelas galáxias, agarrada no pescoço da Girafa Elétrica que vai encompridando conforme a imaginação.

PENSAMENTO da SILVA: Um parente querido. Deve ser seu primo, também. A não ser que tu não seja Silva como nós.

GADONOVO & BOVINO: São formados do mesmo barro que fez um pouquinho de todo o brasileiro que não é filho do dono do banco, do dono da loja de roupas, do dono da fazenda, da fábrica, da funerária, da farmácia, da televisão, do estúdio pornô, que, aliás, muitas vezes, é o mesmo dono. De resto, e o resto é sempre o mais importante, são filhos de Pedro Pedreiro e só. Ou seja, quando não estão ruminando estão mugindo.

Vuuuuush.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)

terça-feira, 21 de maio de 2019

SER MÃE NA ANTIGUIDADE



SER MÃE NA ANTIGUIDADE
Na frente da caverna havia uma parada de ônibus. Desde a pré-história o HOMO TARARAKA esperava o transporte coletivo. Foi quando aconteceu de MÃE NANA passar por ali. Lenço na cabeça, decote na blusinha do brechó, batom cor de carmim e uma prosa infinita. Lembrava dos tempos quando foi mãe, pela primeira vez, na ANTIGUIDADE. Para quem teve 140 filhos e viveu bastante, Mãe Nana foi testemunha ocular da vida materna nas sociedades de pequena escala: onde prevalecia o trabalho agrícola, o artesanato, o pastoreio, a caça e a pesca para sobreviver. O Homo Tararaka só balançava a cabeça concordando com tudo que ela dizia.

Lembro, Tararaka, falava a Mãe Nana tão alto e empoderada que as pessoas do outro lado da avenida, na parada do ônibus que corria no sentido contrário, ouviam também o seu discurso, lembro de quando tudo isso era campo, ela disse. Campo, pedra polida e pedra lascada. E sabe como a gente dava a luz? Ganhei nenê sozinha em cima de sambaqui que é uma montanha de concha na praia; ganhei filho com o auxílio de parteiras que eram que nem feiticeiras de mulher barriguda, na roça; ganhei nenê até mesmo em festas comunitárias com toda a aldeia envolvida, na floresta. Hoje, eu vejo guria, mãe de primeira viagem, reclamando de fazer o pré-natal! Que que é a preguiça, né? Na hora do tesão não tem preguiça, seu Tararaka. E o homem das cavernas sorriu um sorriso de dentes cariados, mas sacanas de quem, desde as cavernas, sabia que a humanidade havia descoberto o fogo e que ele é ruim de apagar.

Porém a mortalidade entre as crianças e as mães era muito alta. Assim como, havia o abandono de recém-nascidos, muitas vezes, isso ocorria quando eram gêmeos que nasciam, ou deficientes de algum tipo, ou quando muitas meninas nasciam em sequência. Havia abandono e infanticídio também quando o parto ocorria antes do último filho ter mais de 02 anos. Sim, Tararaka, eu tive mais do que os 140 filhos que vivem hoje pelo mundo moderno. É que nem todos vingaram… E família muito grande, você sabe, é bem complicado!

Mas você sabe também, homem primata, melhor do que eu, que vim um pouco depois de você na História: o início da vida para vários povos antigos não era no nascimento! Podia ser desde o ato sexual dos pais, como em vários países da África negra; quando a criança recebia um nome, como entre os povos malaios da Oceania; ou quando viravam adultos, como entre muitos índios da Amazônia.

Viu o que dá não estudar, Homo Tararaka? Ao invés quis ficar por aí dando de porrete nos outros homens das cavernas, agora tu nem sabe que a lenda que deu origem ao nome cesariana é em homenagem ao general romano Júlio César, o mais famoso homem a nascer de operação na Antiguidade, 100 anos a.C. Fiz muita cesariana, mas sempre preferi o parto normal. E alisou a pança a Mãe Nana. Cicatrizes de nascimentos que eram como medalhas para um soldado.

Agora você fica olhando meus peitos que nem tarado, Homo Tararaka, e nem sabe que as mulheres dos povos nômades amamentavam até os 03 anos de idade as suas crias. Já as mulheres agricultoras até os 02 anos de idade. Por isso, os bebês antigos mamavam 4 vezes por hora numa média de 2 minutos. Nessas condições antigas, a criança ficava 90% do tempo junto ao corpo da mãe: enrolada em faixas, bolsas e pranchas com xales. É, meu amigo, cabeça dura, não havia carrinho de bebê naquela época, pra deixar essa gente fria e alienada desde cedo, como hoje em dia na cidade grande. E não me olhe com cara de besta só porque você é ruim de fazer conta. Deixe de ser um pré-histórico e vá comprar uma calculadora que ela já te basta pra essa aritmética e também pros teus talhos de acém que tu compras toda semana no açougue da esquina. Aliás, vejo que está indo pra lá, né não?

Nem sobre a paternidade você sabe qualquer coisa, hein? Os homens são bem menos participativos na criação dos filhos do que os machos avestruzes! Mas tem bicho pior que os homens, por incrível que pareça, tem os chimpanzés! Querem fazer filho, mas não querem criar! Não seja um chimpanzé com sua namorada, Homo Tararaka, ajude-a!

Sorte da mulherada antiga que no mundo pré-moderno havia muitos cuidadores diferentes para uma criança. Os tios, os avós, irmãos e até toda a tribo ou aldeia ajudavam bastante os pais biológicos. É que as famílias eram extensas, com dezenas de pessoas e bastante misturadas.

Homo Tararaka foi abrir a boca, parecendo que ia falar alguma coisa, não se sabe se do ônibus que não vinha, dos peitos fartos de Mãe Nana ou sobre a História Antiga, antes de terminar, porém, Mãe Nana já saiu falando, sempre em voz alta, adivinhando o pensamento dos outros: não havia esse negócio de choro de nenê! Os antigos atendiam prontamente os filhos, até porque ficavam mais horas com eles vivendo em suas atividades artesanais ou agrícolas. Sendo que o choro, teorizou Mãe Nana, não ensina nada a ninguém, a não ser ficar manhoso, recalcado e problemático na vida adulta.

Uma moça de óculos escuros, na parada do outro lado da rua, fazia cara feia pra gritaria de Mãe Nana e puxava seu fone de ouvido da bolsa. Dois adolescentes de skate na mão davam risada da cena insólita: um típico homem de neandertal e uma típica Mãe Nana conversando. Mãe Nana encarou os cidadãos e meio que dando uma indireta pra eles, falou, ainda mais alto, que entre os povos nômades a punição era mínima ou apenas de algumas palmadas nos filhos. Já entre os povos antigos que viviam do pastoreio ou de uma agricultura mais intensa, a punição dos pais também era mais severa: tinham medo de as crianças atrapalharem na propriedade dos animais, dos bois, das cabras e ovelhas ou mesmo que esculhambassem a lavoura e os silos.

Nisso passou o transporte escolar, que pegou os dois moleques da parada. Mãe Nana prosseguiu o raciocínio dizendo que, raramente, existia uma escola com séries, assim como, poucos tinham acesso à escrita e à leitura na IDADE ANTIGA. Por outro lado, as crianças se misturavam bastante com jovens de todas as idades. Por isso, a brincadeira era o grande aprendizado. As crianças imitavam as atividades adultas: faziam lanças, arcos e flechas em miniatura, caçavam e montavam casas em árvores, fazendo maquetes e miniaturas de animais, canoas e redes, futricando em plantas e bichos. Para Mãe Nana, que detestava o futebol, as brincadeiras não eram competitivas: não valiam ponto nenhum, nem ninguém ganhava ou perdia na Antiguidade, enquanto brincava. Havia poucos brinquedos e quando havia eram feitos pelas próprias crianças ou pelos pais. Boneca de sabugo de milho, tive muitas, Homo Tararaka, e até pingou uma lágrima no olho esquerdo de Mãe Nana, que é o olho do coração, portanto, das lembranças e das saudades. Mas ela tratou de enxugar rapidinho o choro pra não borrar a maquiagem.

Outra grande forma de aprender sobre os antepassados, os deuses e a natureza, era com as histórias em volta de uma fogueira, disse Mãe Nana no que acudiu veementemente com a cabeça o Homo Tararaka. Não se sabe se relembrando as danças da chuva e da primavera envolta das fogueiras pré-históricas ou se porque finalmente vinha o ônibus, que o Homo Tararaka esperava há séculos, rumo ao açougue da Lapa.

Quando ficou sozinha na parada, Mãe Nana teve a sensação de ter falado duas horas com um adolescente. Maldosa, como sempre, mas na mesma proporção tendo um pensamento ligeiro, ela lembrou também que não havia adolescência na Antiguidade. As crianças saíam da infância direto para os compromissos adultos logo aos 13, 14 ou 15 anos de idade. Menina ou menino, tanto fazia. Sem essa interminável fase de transição entre ser criança e ser adulto que vai dos 15 aos 30 anos, alguns até mais.

Da sacola da feira, tirou um livro de Jared Diamond e ficou lendo o mundo até ontem, encostada no abrigo da parada de ônibus. Esquecida da hora e dos seus filhos problemáticos que faziam o mundo de hoje ser como é.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)