sexta-feira, 31 de maio de 2019

QUEM NUNCA RECEBEU UMA BÍBLIA DO GIDEÃO?



QUEM NUNCA RECEBEU UMA BÍBLIA DO GIDEÃO?

Quem nunca teve uma aula interrompida na escola pública para receber seu exemplar da Bíblia do Gideão? Os gideões são aqueles tiozinhos simpáticos, que chegam como alguém que não quer nada, senão pisando em ovos mesmo, mas te contam uma poderosa receita de bolo: que um dia estiveram estropiados na vida, mas viraram empresários, ainda que micro, muito bem-sucedidos, tendo uma família bonita, de filhos que não repetiram seus erros na juventude e hoje são lindos, inteligentes e fortes como eles não foram. Por isso os gideões distribuem gratuitamente a Bíblia, ou trechos dela, aos jovens cabeças de vento que habitam as nossas escolas.

O Gideão que lhes inspira é um desses clássicos heróis do Antigo Testamento bíblico, com uma história perfeita para educar as criancinhas: o Gideão original estava lá no Oriente sovando farinha de trigo quando um anjo veio e lhe mandou escorraçar as tribos pagãs que incomodavam os hebreus na sua época de antigamente.

O moço então convocou 300 guerreiros, escolhidos porque invés de beberem água que nem gente no rio Jordão eles beberam a água do rio que nem cachorros (a lambidas, entenda-se). Depois, eles assustaram os inimigos com um jarro que tinha fogo dentro e não água! Pois é, daí foi só a pancadaria que rolou solta. Inclusive, Gideão, o filho de Joás, da tribo de Manassés, com seus guerreiros, arrebentou com os chefes das gangues rivais, tanto do deserto quanto as ribeirinhas, esfolou e decapitou a rapaziada inimiga de boas. Assim, Gideão ficou 40 anos sendo o mais poderoso da sua região. Teve muitas esposas e uma amante, com 70 filhos para criar.

Veja como os homens de antigamente eram muito mais honrados mesmo: hoje em dia um machão teria 70 amantes mais uma esposa, e, provavelmente, não assumiria nenhum filho. Enfim…

Você pode ler essa história melhor lá em JUÍZES, capítulo 6, e seguintes, do Velho Testamento hebraico. Resumir a Bíblia é muito difícil porque ela já é um resumo. Se muito cristão se desse conta disso, tinha muito padre e pastor desempregado, por aí, atualmente.

Infelizmente os gideões não colocam o capítulo de Gideão no livrinho azul-escuro que distribuem pelo mundo que é quando a Bíblia vem traduzida em outras línguas que não o inglês deles (dos gideões). O livrinho de bolso desses missionários, portanto, vem assim “só” com o Novo Testamento mais os Salmos de Davi e os Provérbios do rei Salomão.

Mas da onde vieram esses gideões internacionais, que imprimem essas mini Bíblias e espalham elas aos quatro ventos em muitas línguas? Eles surgiram em 1899 nos EUA. Ao menos é o que conta a própria lenda deles! Foi lá no Wisconsin. Curiosamente a sede deles agora fica na terra da música country: Nashville.

Mas vejam que coisa braba é você pesquisar sobre os cidadãos que criaram os gideões. É difícil encontrar bons livros ou páginas de internet sobre eles. Todas as fontes falam só que três homens, comerciantes do Noroeste dos EUA, levaram o crédito. Mas seus nomes se embaralham com o de outros homens com nomes parecidos, igualmente evangélicos e empresários poderosos na América do Norte da virada do século XIX pro século XX.

Um deles, chamado Samuel Hill, ou Sam, para os íntimos, eu pensei inicialmente que tinha vivido entre 1857 e 1931. Que tinha sido um advogado dos trens que cortavam o Oregon, nos EUA, nessa época da II Revolução Industrial. Pensei que sua família era de quacres, aquela sociedade de amigos de Jesus que sonhava com uma democracia espiritual na Inglaterra do século XVII e, em 1656, chegou a Boston, corrida pelos reis ingleses. Pensei que esse tal Sam Hill era o que tinha trabalhado com o seu papai, mas que depois de um tempo ambos se desentenderam e o Sam fez fortuna como o grande precursor das estradas asfaltadas pelo interior dos EUA. Consta que disse inclusive assim, uma frase bem famosa: “Boas estradas são mais do que um passatempo, são a minha religião”. E fiquei pensando se isso não era pecado, mas não levei adiante esse pensamento porque sempre encontramos justificativas pra tudo quando queremos olhar as nuvens digo ler a Bíblia.

Pensei que esse Sam Hill, o grande empreendedor, foi quem vendeu, em Seattle, gás e luz elétrica pro povo. Que viajou dezenas de vezes pela Europa e até pelo Japão. Que construiu um rancho chamado Maryhill, em Washington, onde ergueu um Arco pela Paz entre os EUA e o Canadá, um Museu de Arte e até uma réplica do Stonehenge (aquelas pedras antigas dos celtas e dos gauleses que habitavam a Grã-Bretanha). Jurava que, pronto, aí estava o primeiro grande gideão internacional. Qual nada! Este Sam Hill existiu bem assim, conforme escrevi acima. Mas que raio, descobri em seguida, não sem mil horas de leituras!, lá numa quase perdida reportagem de 1936 do jornal The New York Times, digitalizada e tudo, que esse Samuel Hill, embora bem parecido com o outro, não era o homem que eu queria. O meu homem era SAMUEL E. HILL (1867-1936), o verdadeiro que aparece nos anais dos próprios gideões como um seu fundador, mas que quase não se encontra mais nada de interessante nem relevante na selva digital que é a internet.

Os outros dois gideões, de acordo com outro famoso jornal norteamericano, desta vez, o jornal Washington Post, descubro eu ao ler em reportagem, sem data, no portal desse jornalão, que foram JOHN NICHOLSON (1858-1946), um vendedor de alumínios que em 1899 topou, na cidade de Boscobel, no Hotel Central desta cidadezinha, com o Sam Hill. Este que viajava também a negócios no mesmo lugar e hotel e época e eu confundi com o outro cara que tinha uma puta biografia. E eu pensei, caramba, o homem ainda espalhou mil Bíblias pelo mundo... Mas eu estava enganado, como já disse.

No quarto 19 do hotel de Boscobel, desde 1987 fechado, porque em ruínas, em meio a uma noite chuvosa, foi que John e Sam se recolheram aos seus quartos, ambos foram os únicos dois homens religiosos da ocasião que se puseram a rezar em meio a uma algazarra, as beberagens e à folia dos outros hóspedes. Assim os dois fizeram um pacto para espalhar Bíblias pelo mundo. Ainda arregimentaram depois, em um segundo encontro, um tal WILLIAM KNIGHTS (1853-1940) que buscou no Gideão dos Juízes hebreus o modelo de obediente evangélico conquistador.

Aliás, os gideões só aceitam homens como protagonistas em suas pregações nômades, inclusive também eles não aceitam católicos. Consta na Wikipédia que já são mais de 2 bilhões de Bíblias que eles distribuíram. Em 93 anos de missão, metade desse número foi alcançado, e, em apenas 14 anos, a outra metade.

O livrinho que, só na sua casa, adivinho, deve ter uns cinco, é impresso na Pennsylvania, nos EUA, com edição da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, grupo de editores bíblicos original da Inglaterra de 1831. E a tradução é de João Ferreira de Almeida. Mas se eu for te contar sobre este tradutor português, nascido em 1628, que trabalhou para o Império holandês no Ceilão e na ilha de Java, na Indonésia, que faleceu em 1691, sem concluir a tradução do Velho Testamento, mas tendo feito a mais lida das traduções protestantes do Novo Testamento para a língua portuguesa, rapaz, eu ia começar outra crônica enorme pois vai uma longa e misteriosa história. Saber quem ele foi é tão difícil quanto foi, para mim, estudar os três primeiros gideões internacionais.

A trilha sonora para esta crônica fica a cargo dos Beatles: em 1968, o Paul McCartney cantou na canção ROCKY RACOON sobre um caipira de Dakota que tomou um dedaço nos olhos quando sua esposa Magill fugiu com outro cara, chamado Dan. Rocky foi de atrás dos dois, louco de raiva e armado. Encontrou em uma cabeceira, no quarto do hotel, onde se hospedou, ao lado do quarto do casal de traidores, uma Bíblia do Gideão e não deu a mínima. Pois a única ideia dele era meter bala nas pernas dos dois canalhas. Mas Dan, o garanhão, foi também mais ligeiro no revólver e baleou o Rocky primeiro. Estirado de volta na cama do seu quarto pelo doutor que trabalhava por ali e gostava de mandar ver numa garrafa de gim, por isso sempre com um famoso bafo e um perfume etílico, o Rocky se agarrou na Bíblia dos Gideões e disse ao médico, “saindo dessa, dotô, sairei renascido”. Se referia ao livrinho, creio eu.

Sem mais, dedico este preguiçoso exercício de jogar conversa fora ao Sábio de Voltaire (1694-1778), o grande escritor francês que anotou em seu DICIONÁRIO FILOSÓFICO de 1764: “Se a nossa santa religião foi muitas vezes corrompida por esse furor infernal, a loucura dos homens é a principal responsável”.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)


Um comentário:

  1. MUITOINTERESSANTE a parte que mais gostei é de saber porque raioso antigo tesamento não está, porque nã temrinou de ser traduzido, e claro, só homens, óh, que surpresa.Será que é pra evitar a fadiga das mulheres ou pra evitar conviver com elas?... vai sabe. Obrigadão pela pesquisa.

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