sábado, 4 de maio de 2019

CONVIVO COM TROLLS E VOCÊ?



CONVIVO COM TROLLS E VOCÊ?
Para quem curtiu a ficção científica com jeitão de fábula do Guillermo del Toro, A FORMA DA ÁGUA, como eu, vencedora do Oscar de 2018, agora vieram os suecos, dirigidos pelo iraniano ALI ABBASI e filmaram um filme sobre a Idade Média nada a ver com Game of Thrones ou com a nostalgia medieval que muito nerd, digo, geek, sente por aí. Estou falando de BORDER, em sueco GRÄNS, em português NA BEIRA ou NA FRONTEIRA.

O roteiro vem de um conto do escritor sueco AJVIDE LINDQVIST, um mágico de rua que, desde 2004, escreve contos de terror. Um terror distante das papagaiadas do Stephen King, alerto. O livro que saiu o conto que virou filme é de 2006 e chama DEIXAR OS VELHOS SONHOS MORREREM.

Vamos ao filme: a protagonista é uma TROLL que trabalha como guarda de um porto sueco e pensa ter nascido com algum tipo de deficiência, tipo uma raridade genética, um cromossomo a mais ou a menos, pois tem uma aparência supostamente feia, tem também medos irracionais de tempestades, e tem um olfato desgraçado de bom que fareja a maldade das pessoas. Ela vive num bosque com um bobalhão criador de cachorros e, mesmo triste, ela segue em frente numa rotina eterna. Até que um dia ela fareja num outro troll esquisitão algo de suspeito. Tentada por finalmente encontrar na vida alguém parecido com ela, ao menos fisicamente, TINA, a protagonista da história, acaba convidando o ogro para ser o seu inquilino, se apaixona pelo cara e descobre o verdadeiro amor. Ele é quem lhe revela que os últimos trolls vivem na Finlândia, que ela é uma troll perfeita, não um humano deformado e, entre outras coisas, que os trolls sequestram crianças para vender a bandidos só para ver os humanos sofrendo, pois que eles teriam torturado e exterminado a raça dos trolls há séculos. Apesar de feiosos, os trolls são extremamente sensíveis e conectados à natureza. Pelo faro, interagem carinhosamente com raposas, pedras, cachoeiras, alces e outros bichos da Escandinávia.

A contradição da história, que trata de civilização e da barbárie, de inclusão, diferença e preconceito social, de um jeito longe da chatice, através de uma fantasia realista, reside no seguinte: Tina por ser tipo uma policial, sabe da maldade humana: do tráfico de drogas, dos vícios, da pornografia. Vivendo uma vida reprimida, cuidando de um pai (humano) quase caduco, viúvo e aposentado num asilo, ela só se liberta, descobrindo o amor e o sexo, com o OGRÃO que cai de paraquedas na sua vida metódica, repetitiva, sem férias. Ao descobrir que poderia ter uma vida mais livre e verdadeira sendo quem de fato era, ou seja, um monstro, um troll medieval, ela descobre também que, por trás do crime do sequestro de crianças para a pedofilia de humanos estúpidos, estava a sua raça, em vingança e ódio aos seres humanos preconceituosos e violentos. Mas aí ela percebe também que o sonho de viver sem tentar cometer maldades é coisa de humanos, nem sequer isso é cogitado pelos ogros e, se é para ser alguma coisa nessa vida, ela se vê muito mais ligada a essa bela e necessária ingenuidade humana, ou seja, a utopia da bondade e da civilização, da dignidade e da paz, do que os ogros ou os humanos distópicos: aqueles maldosos de todo o tipo, os pessimistas e os cínicos.

O filme termina com Tina mais solitária e transtornada do que nunca, porém, sem machucar ninguém, como afirma ser o seu princípio de vida, ela entrega à polícia o seu amor-ogro-bandido. Ao mesmo tempo, ela realiza o terrível sonho de ser mãe. Fico eu pensando então, após duas horas de cinema, com uma plateia de quatro pessoas ao todo, qual o destino de um ogrinho no século XXI?
(c. a. albani da silva, o inventor do vento, 04/05/2019)

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