CONVIVO
COM TROLLS E VOCÊ?
Para
quem curtiu a ficção científica com jeitão de fábula do
Guillermo del Toro, A FORMA DA ÁGUA, como eu, vencedora do Oscar de
2018, agora vieram os suecos, dirigidos pelo iraniano ALI ABBASI e
filmaram um filme sobre a Idade Média nada a ver com Game of Thrones
ou com a nostalgia medieval que muito nerd, digo, geek, sente por aí.
Estou falando de BORDER, em sueco GRÄNS, em português NA BEIRA ou
NA FRONTEIRA.
O
roteiro vem de um conto do escritor sueco AJVIDE LINDQVIST, um mágico
de rua que, desde 2004, escreve contos de terror. Um terror distante
das papagaiadas do Stephen King, alerto. O livro que saiu o conto que
virou filme é de 2006 e chama DEIXAR OS VELHOS SONHOS MORREREM.
Vamos
ao filme: a protagonista é uma TROLL que trabalha como guarda de um
porto sueco e pensa ter nascido com algum tipo de deficiência, tipo
uma raridade genética, um cromossomo a mais ou a menos, pois tem uma
aparência supostamente feia, tem também medos irracionais de
tempestades, e tem um olfato desgraçado de bom que fareja a maldade
das pessoas. Ela vive num bosque com um bobalhão criador de
cachorros e, mesmo triste, ela segue em frente numa rotina eterna.
Até que um dia ela fareja num outro troll esquisitão algo de
suspeito. Tentada por finalmente encontrar na vida alguém parecido
com ela, ao menos fisicamente, TINA, a protagonista da história,
acaba convidando o ogro para ser o seu inquilino, se apaixona pelo
cara e descobre o verdadeiro amor. Ele é quem lhe revela que os
últimos trolls vivem na Finlândia, que ela é uma troll perfeita,
não um humano deformado e, entre outras coisas, que os trolls
sequestram crianças para vender a bandidos só para ver os humanos
sofrendo, pois que eles teriam torturado e exterminado a raça dos
trolls há séculos. Apesar de feiosos, os trolls são extremamente
sensíveis e conectados à natureza. Pelo faro, interagem
carinhosamente com raposas, pedras, cachoeiras, alces e outros bichos
da Escandinávia.
A
contradição da história, que trata de civilização e da barbárie,
de inclusão, diferença e preconceito social, de um jeito longe da
chatice, através de uma fantasia realista, reside no seguinte: Tina
por ser tipo uma policial, sabe da maldade humana: do tráfico de
drogas, dos vícios, da pornografia. Vivendo uma vida reprimida,
cuidando de um pai (humano) quase caduco, viúvo e aposentado num
asilo, ela só se liberta, descobrindo o amor e o sexo, com o OGRÃO
que cai de paraquedas na sua vida metódica, repetitiva, sem férias.
Ao descobrir que poderia ter uma vida mais livre e verdadeira sendo
quem de fato era, ou seja, um monstro, um troll medieval, ela
descobre também que, por trás do crime do sequestro de crianças
para a pedofilia de humanos estúpidos, estava a sua raça, em
vingança e ódio aos seres humanos preconceituosos e violentos. Mas
aí ela percebe também que o sonho de viver sem tentar cometer
maldades é coisa de humanos, nem sequer isso é cogitado pelos ogros
e, se é para ser alguma coisa nessa vida, ela se vê muito mais
ligada a essa bela e necessária ingenuidade humana, ou seja, a
utopia da bondade e da civilização, da dignidade e da paz, do que
os ogros ou os humanos distópicos: aqueles maldosos de todo o tipo,
os pessimistas e os cínicos.
O
filme termina com Tina mais solitária e transtornada do que nunca,
porém, sem machucar ninguém, como afirma ser o seu princípio de
vida, ela entrega à polícia o seu amor-ogro-bandido. Ao mesmo
tempo, ela realiza o terrível sonho de ser mãe. Fico eu pensando
então, após duas horas de cinema, com uma plateia de quatro pessoas
ao todo, qual o destino de um ogrinho no século XXI?
(c.
a. albani da silva, o inventor do vento, 04/05/2019)
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