terça-feira, 28 de março de 2017

Nas pegadas das minhas botas trago as ruas de Porto Alegre


Nos 245 anos de Porto Alegre (fundada em 26/03 de 1772 - assinala a ampulheta de um historiador e detetive apaixonado por bugigangas) nosso repórter sobrenatural Almada Alves pediu, em sessões mediúnicas realizadas em botecos na Cidade Baixa, numa praia do Guayba, em nuvem que baixou no cume do Morro Santana, na encruzilhada da Riachuelo com a Borges de Medeiros, que alguns ilustres caminhantes das ruas da Capital dissessem onde estão suas pegadas na cidade, inspirados conforme cantou Bebeto Alves (cantadô das fronteiras do rio Uruguay mas capaz de fazer a síntese poética da capital da Província na canção Pegadas, de 1987).

* Nota introdutória: Brincalhões, chegando até mesmo a ser irônicos e irreverentes, os espíritos não têm pudor de se dizer um, de se passar por outro. O repórter sobrenatural Almada Alves adverte o leitor que no Além (em quem acredita no Além, ao menos) as opiniões divergem e mudam também. Isso implica que os depoimentos abaixo são aproximativos ou, inclusive, ficções, de um jornalista metempsicótico.
AA.


JULIETA BATTISTIOLI (1907 a 1996): “Minhas pegadas estão na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, onde fui a primeira mulher eleita para a política na cidade, em 1948. Andei, com meu marido, entre os operários, sindicalistas e comunistas do bairro Navegantes. Não participei da greve geral de 1917, pois estava em Palmares perdida no inço durante a colheita de arroz, ainda menina. O movimento comunista projetou as mulheres como nenhum outro na causa da igualdade e da liberdade, contra todo o machismo, inclusive na Capital da Província e seu ranço provinciano”.




NAZIAZENO BARBOSA (Desde 1935 até hoje, com seus ratos): “Ando até hoje, como meu amigo Dyonélio andava, por todos os mesmos lugares daqueles que saem de casa às 06h da madrugada pra quitar suas dívidas (com o leiteiro, o banqueiro, o empreiteiro ou o aluguel) e anteontem buscaram, como eu, o filho pequeno, que andava doente, na Santa Casa. Nunca pensei em matar o leiteiro, nunca tentei surrupiar o vizinho, ainda que as entranhas se reviraram quando a vizinhança inteira ouviu o leiteiro me dando ultimato das dívidas que tenho”.



LUPICÍNIO RODRIGUES (1914 a 1974): “Todas as dores de cotovelo terminam num bar. Os sambas que os marinheiros trouxeram do Rio de Janeiro para a beira do Guayba embalaram as noites boêmias de muito malandro do Paralelo 30. Você sabe como é: tu pode até ser tímido e desengonçado mas sempre haverá uma nova história de ciúmes, traição, triângulos amorosos e farras na gafieira pra se ouvir ou contar. Só vivendo um novo amor a gente esquece o antigo. Não, não esquece. Há ainda o remorso, quando a gente envelhece e já não consegue botar os pensamentos na lata de lixo da consciência. Mas procure por mim em qualquer café de esquina e me encontrarás, assim como nos cabarés e na batucada de caixinhas de fósforo”.

ELIS REGINA (1945 a 1982): Nesses 35 anos da minha morte vi o Brasil (porque nunca fiquei míope mirando apenas o umbigo de Porto Alegre!) que cantei, desde o lápis dos poetas, sair de uma ditadura militar asquerosa e naufragar numa democracia de araque com Sarney e Collor de Melo. Depois veio o neoliberalismo de FHC e, em nome da globalização norteamericana, vendemos quase todos os serviços públicos. E quando Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores tentearam reerguer a economia jogando os pobres pra dentro do capitalismo de consumo, a casa-grande (branca ou verdeamarela, rica) semeou ódios na grande mídia, sabotou a primeira Presidenta de nosso país (alegre-portense, por adoção!) embretando a todos num oceano de incertezas e retrocessos. Ainda assim, como cantou minha amiga, hoje companheira de Céus e Infernos, Violeta Parra, dou gracias a la vida!

APOLINÁRIO PORTO ALEGRE (1844 a 1904): Levo Porto Alegre nas pegadas do meu sobrenome, que herdei de meu pai e outros herdaram de outros pais. Ouvi, pelo menos, três vezes, os murmúrios do Guayba chegando de fora. Quando aos 15 anos deixei o porto de Rio Grande vindo para cá; quando mal entrado na faculdade, voltei do RJ para acolher minha viúva mãe; quando por três anos me exilei no Rio da Prata, com a faca no pescoço por ser republicano federalista e liberal, maragato de lenço vermelho, como hoje cantam os cetegistas: nada de Comte e seus positivismos na minha fé intelectual. Fundei colégios pela cidade e afundei a sola cansada de minhas botas, no fim da vida, na Casa Branca, de fronte ao Caminho do Meio, onde os farroupilhas saravam seus feridos de guerra em 1835 e eu a adquiri, a mansão, em 1885. Lá terminei de escrever os manuscritos de toda uma vida pensativa que havia inciado escrevinhando ainda na Sociedade Partenon Literário. No meu Popularium Sul-Riograndense anotei: “Os discípulos de A. Comte julgam que descobriram a pólvora, quando dizem: 'Os mortos governam os vivos'. Isto é velho como a humanidade que teve simultaneamente o culto do fogo, da luz e dos avós finados”.

QORPO-SANTO (1829 a 1883): “Somente 100 anos depois de escritas, minhas peças teatrais excêntricas foram encenadas. E escrevi dezasseis num jorro de seis meses criativos no ano de 1866. Fiquei tanto tempo longe do corpo de mulher que meu corpo ficou santo. Mas daí também acho que fiquei doido, um pouco por causa disso. Da minha ousada tipografia, fiz-me enciclopedista da loucura. Receitas culinárias, reforma ortográfica, prostitutas e surrealismo (sem nem saber do Lewis Carrol sem nem haver o André Breton ainda) me inspiraram. Deu no que deu: comédias e teatro do absurdo para as mentalidades do século XX. Hospício para o ultrapassado século XIX. Será? Serei eu ou você, um dia, o louco manso do Guayba”?

ÁLVARO MOREYRA (1888 a 1964): “Fui-me de Porto Alegre aos 20 anos. É mais fácil achar-me pegadas e netos na Cidade Maravilhosa. Mas sempre procurei destacar virtudes alheias em meio a um mundo pleno de ódios e competições. E “sempre se tem 20 anos num canto do coração”. Então antes mesmo de me reunir com o grupo da revista Fon Fon, já acumulava vento, chuva e vida na Província. Como falar de Porto Alegre sem falar da Grande Porto Alegre? Antes do Trensurb e da Friuei já andava eu pros lados de São Leopoldo aprendendo com Jesuítas que tinham vindo trazer deus à Colônia portuguesa na América do Sul. Nos legaram muita coisa, esses padres e escribas, entre a Arte e as Universidades. Podemos até esquecer o berço, mas nunca não o colo de quem nos embalou”.

CARLOS NOBRE (1929 a 1985): “Deixei pegadas na rádio Gaúcha, onde era cantor de rádio disfarçado pra não arranjar confusão com mamãe. E mamãe era maior fã de mim e nem sabia que era eu quem cantava. Pelo Grêmio Portoalegrense de Futebol pisei firme, embora quem faz rir costume ter a pisada mais leve: do Fortim da Baixada ao Olímpico Monumental, torci. Virei Museu em Guayba depois de morrido (pena! não morri de rir! um dia ainda chego lá). Depois que os milicos viraram do avesso a Última Hora, com sua última ditadura (1964 a 1985) paguei as contas da minha nobre família com a penúltima página de Zero Hora, embora nunca tenha virado o jornal pra ler do começo. Acho que ajudei a criar uma mitologia pro Campeonato Gaúcho de Futebol. No mais, o resto de minhas pegadas são piadas (com cara de fanzine e recortes de mulheres)”.


RADAMÉS GNATALLI (1906 a 1988): “Desde pequeno, minha família me ofereceu o violino e o piano. Mas não contente, garrei o violão e o cavaquinho também. Saudade do cinema mudo onde ganhei meus primeiros trocados fazendo-lhe as trilhas. Rapsódias, sinfonias, concertos. Fui professor de outro maestro incrível, o Antônio Brasileiro, esse Tom Jobim de Ipanema. E como aquela sabedoria oriental bem diz o discípulo deve se sair melhor do que o tutor para comprovar a superioridade deste último. Na Rádio Nacional, fonte de todo o imaginário dos brasileiros, por parte da indústria cultural, ao menos, em tempos anteriores à Rede Globo, claro, onde também trabalhei, vocês encontrarão três décadas de pegadas minhas. Mas o que saliento é que, como diz a Mãe Nana do Albani, todos levam um pouco dos outros consigo, cá entre nós, procuremos sobre minhas pegadas os passos de outros gigantes: Maestro Pixinguinha, Ary Barroso – todos batutas; Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos, com a câmera na cabeça, com muitas ideias nas mãos”.

PADRE CIENTISTA LANDELL DE MOURA (1861 a 1928): “Das escadarias da Igreja de Nossa Senhora do Rosário abençoo a toda internet, todo smartphone, todo computador, todo telefone, todo aparelho de rádio, toda rádio comunitária, toda rádio amadora, toda grande indústria de comunicação do Brasil, da Itália, dos EE UU. A ciência é a maior obra de deus revelada aos homens. Debati com o curioso imperador Dom Pedro II sobre a transmissão do som e da imagem. Ele sabia um bocado, especialmente de fotografia. Enquanto isso a monarquia desmoronava. Acima do radialismo, como presente divino, somente mesmo está o tabaco. De preferência os cigarrinhos da marca Veado, de fabricação carioca. Cá entre nós, um segredinho: recebi a extrema unção e uma última pitada venenosa das mãos do cumpádi, digo, de Dom João Becker. Em cada cinzeiro, em cada maço, em cada aparelho de som há de se encontrar os meus passos de fé.


BEBETO ALVES – PEGADAS, 1987: