Nos
245 anos de Porto Alegre (fundada em 26/03 de 1772 - assinala
a ampulheta de um historiador e
detetive apaixonado
por bugigangas)
nosso repórter sobrenatural Almada
Alves
pediu, em sessões mediúnicas realizadas em botecos
na
Cidade Baixa, numa
praia do Guayba, em nuvem que baixou no cume do Morro Santana, na
encruzilhada da Riachuelo com
a Borges de Medeiros,
que
alguns ilustres caminhantes das ruas da Capital dissessem onde estão
suas pegadas na cidade, inspirados conforme cantou Bebeto Alves
(cantadô
das
fronteiras
do rio Uruguay mas capaz de fazer a síntese poética da capital da
Província na canção Pegadas, de
1987).
*
Nota introdutória:
Brincalhões, chegando
até
mesmo a
ser
irônicos e irreverentes, os espíritos não têm pudor de se dizer
um, de se passar por outro. O repórter sobrenatural Almada Alves
adverte o leitor que no Além (em quem acredita no Além, ao menos)
as opiniões divergem e mudam também.
Isso implica que os depoimentos abaixo são aproximativos ou,
inclusive, ficções, de um jornalista metempsicótico.
AA.
JULIETA
BATTISTIOLI (1907 a 1996):
“Minhas pegadas estão na Câmara de Vereadores de Porto Alegre,
onde fui a primeira mulher eleita para a política na cidade, em
1948. Andei, com meu marido, entre os operários, sindicalistas e
comunistas do bairro Navegantes. Não participei da greve geral de
1917, pois estava em Palmares perdida no
inço durante a
colheita de arroz, ainda
menina.
O
movimento comunista projetou as mulheres como nenhum outro na causa
da igualdade e da liberdade, contra todo o machismo, inclusive na
Capital da Província e
seu ranço provinciano”.
NAZIAZENO
BARBOSA
(Desde 1935 até hoje, com
seus ratos):
“Ando até hoje, como
meu amigo Dyonélio andava,
por todos os mesmos lugares daqueles que saem de casa às 06h da
madrugada pra quitar suas dívidas (com o leiteiro, o banqueiro, o
empreiteiro ou
o aluguel)
e
anteontem buscaram, como eu, o filho pequeno, que andava doente, na
Santa Casa. Nunca pensei em matar o leiteiro, nunca tentei surrupiar
o vizinho, ainda que as entranhas se reviraram quando a vizinhança
inteira ouviu o leiteiro me dando ultimato das dívidas que tenho”.
LUPICÍNIO
RODRIGUES (1914 a 1974):
“Todas as dores de cotovelo terminam num bar. Os sambas que os
marinheiros trouxeram do Rio de Janeiro para a beira do Guayba
embalaram as noites boêmias de muito malandro do Paralelo 30. Você
sabe como é: tu
pode
até ser tímido e desengonçado mas sempre haverá uma nova história
de ciúmes, traição, triângulos amorosos e farras na gafieira pra
se ouvir ou contar.
Só vivendo um novo amor a gente esquece o antigo. Não, não
esquece. Há ainda o remorso, quando a gente envelhece e já não
consegue botar os pensamentos na lata de lixo da consciência. Mas
procure por mim em qualquer café de esquina e
me encontrarás,
assim
como nos
cabarés e na batucada de
caixinhas de fósforo”.
ELIS
REGINA (1945 a 1982):
Nesses 35 anos da minha morte vi o Brasil (porque nunca fiquei míope
mirando apenas o umbigo de Porto Alegre!) que cantei, desde o lápis
dos poetas, sair de uma ditadura militar asquerosa
e
naufragar numa democracia de araque com Sarney e Collor de Melo.
Depois veio o neoliberalismo de
FHC e,
em nome da globalização norteamericana, vendemos quase todos os
serviços públicos. E quando Lula da Silva e o Partido dos
Trabalhadores tentearam reerguer a economia jogando os pobres pra
dentro do capitalismo de consumo, a casa-grande (branca
ou
verdeamarela, rica)
semeou ódios na grande mídia, sabotou a primeira Presidenta de
nosso país (alegre-portense,
por adoção!) embretando
a todos num oceano de incertezas e retrocessos. Ainda assim, como
cantou minha amiga, hoje companheira
de
Céus e Infernos, Violeta Parra, dou gracias
a la vida!
APOLINÁRIO
PORTO ALEGRE (1844 a 1904): Levo Porto Alegre nas pegadas do meu
sobrenome, que herdei de meu pai e outros herdaram de outros pais.
Ouvi, pelo menos, três vezes, os murmúrios do Guayba chegando de
fora. Quando aos 15 anos deixei o porto de Rio Grande vindo para cá;
quando mal entrado na faculdade, voltei do RJ para acolher minha
viúva mãe; quando por três anos me exilei no Rio da Prata, com a
faca no pescoço por ser republicano federalista e liberal, maragato
de lenço vermelho, como hoje cantam os cetegistas: nada de Comte e
seus positivismos na minha fé intelectual. Fundei colégios pela
cidade e afundei a sola cansada de minhas botas, no fim da vida, na
Casa Branca, de fronte ao Caminho do Meio, onde os farroupilhas
saravam seus feridos de guerra em 1835 e eu a adquiri, a mansão, em
1885. Lá terminei de escrever os manuscritos de toda uma vida
pensativa que havia inciado escrevinhando ainda na Sociedade Partenon
Literário. No meu Popularium Sul-Riograndense anotei: “Os
discípulos de A. Comte julgam que descobriram a pólvora, quando
dizem: 'Os mortos governam os vivos'. Isto é velho como a humanidade
que teve simultaneamente o culto do fogo, da luz e dos avós
finados”.
QORPO-SANTO
(1829 a 1883): “Somente 100 anos depois de escritas, minhas
peças teatrais excêntricas foram encenadas. E escrevi dezasseis num
jorro de seis meses criativos no ano de 1866. Fiquei tanto tempo
longe do corpo de mulher que meu corpo ficou santo. Mas daí também
acho que fiquei doido, um pouco por causa disso. Da minha ousada
tipografia, fiz-me enciclopedista da loucura. Receitas culinárias,
reforma ortográfica, prostitutas e surrealismo (sem nem saber do
Lewis Carrol sem nem haver o André Breton ainda) me inspiraram. Deu
no que deu: comédias e teatro do absurdo para as mentalidades do
século XX. Hospício para o ultrapassado século XIX. Será? Serei
eu ou você, um dia, o louco manso do Guayba”?
ÁLVARO
MOREYRA (1888 a 1964): “Fui-me de Porto Alegre aos 20 anos. É
mais fácil achar-me pegadas e netos na Cidade Maravilhosa. Mas
sempre procurei destacar virtudes alheias em meio a um mundo pleno de
ódios e competições. E “sempre se tem 20 anos num canto do
coração”. Então antes mesmo de me reunir com o grupo da revista
Fon Fon, já acumulava vento, chuva e vida na Província. Como
falar de Porto Alegre sem falar da Grande Porto Alegre? Antes do
Trensurb e da Friuei já andava eu pros lados de São Leopoldo
aprendendo com Jesuítas que tinham vindo trazer deus à Colônia
portuguesa na América do Sul. Nos legaram muita coisa, esses padres
e escribas, entre a Arte e as Universidades. Podemos até esquecer o
berço, mas nunca não o colo de quem nos embalou”.
CARLOS
NOBRE (1929 a 1985): “Deixei pegadas na rádio Gaúcha, onde
era cantor de rádio disfarçado pra não arranjar confusão com
mamãe. E mamãe era maior fã de mim e nem sabia que era eu quem
cantava. Pelo Grêmio Portoalegrense de Futebol pisei firme, embora
quem faz rir costume ter a pisada mais leve: do Fortim da Baixada ao
Olímpico Monumental, torci. Virei Museu em Guayba depois de morrido
(pena! não morri de rir! um dia ainda chego lá). Depois que os
milicos viraram do avesso a Última Hora, com sua última ditadura
(1964 a 1985) paguei as contas da minha nobre família com a
penúltima página de Zero Hora, embora nunca tenha virado o jornal
pra ler do começo. Acho que ajudei a criar uma mitologia pro
Campeonato Gaúcho de Futebol. No mais, o resto de minhas pegadas são
piadas (com cara de fanzine e recortes de mulheres)”.
RADAMÉS
GNATALLI (1906 a 1988): “Desde pequeno, minha
família me ofereceu o violino e o piano. Mas não contente, garrei o
violão e o cavaquinho também. Saudade do cinema mudo onde ganhei
meus primeiros trocados fazendo-lhe as trilhas. Rapsódias,
sinfonias, concertos. Fui professor de outro maestro incrível, o
Antônio Brasileiro, esse Tom Jobim de Ipanema. E como aquela
sabedoria oriental bem diz o discípulo deve se sair melhor do que o
tutor para comprovar a superioridade deste último. Na Rádio
Nacional, fonte de todo o imaginário dos brasileiros, por parte da
indústria cultural, ao menos, em tempos anteriores à Rede Globo,
claro, onde também trabalhei, vocês encontrarão três décadas de
pegadas minhas. Mas o que saliento é que, como diz a Mãe Nana do
Albani, todos levam um pouco dos outros consigo, cá entre nós,
procuremos sobre minhas pegadas os passos de outros gigantes: Maestro
Pixinguinha, Ary Barroso – todos batutas; Humberto Mauro e Nelson
Pereira dos Santos, com a câmera na cabeça, com muitas ideias nas
mãos”.
PADRE
CIENTISTA LANDELL DE MOURA (1861 a 1928): “Das escadarias da
Igreja de Nossa Senhora do Rosário abençoo a toda internet, todo
smartphone, todo computador, todo telefone, todo aparelho de rádio,
toda rádio comunitária, toda rádio amadora, toda grande indústria
de comunicação do Brasil, da Itália, dos EE UU. A ciência é a
maior obra de deus revelada aos homens. Debati com o curioso
imperador Dom Pedro II sobre a transmissão do som e da imagem. Ele
sabia um bocado, especialmente de fotografia. Enquanto isso a
monarquia desmoronava. Acima do radialismo, como presente divino,
somente mesmo está o tabaco. De preferência os cigarrinhos da marca
Veado, de fabricação carioca. Cá entre nós, um segredinho: recebi
a extrema unção e uma última pitada venenosa das mãos do cumpádi,
digo, de Dom João Becker. Em cada cinzeiro, em cada maço, em cada
aparelho de som há de se encontrar os meus passos de fé.
BEBETO
ALVES – PEGADAS, 1987:
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