terça-feira, 14 de maio de 2019

OS 140 FILHOS DE MÃE NANA – parte 4



OS 140 FILHOS DE MÃE NANA – parte 4

ARNALDO: Meu filho, Arnaldo, será poeta. Porque ao menos um desta família de lua terá que ser artista pra deixar a vida menos medíocre ou mais grandiosamente incompreensível. Daí já se percebe que seu destino não será fácil nem vultoso. Poemas surgirão e ficarão pelos bares, vendo o jogo do Grêmio, esquecidos. No balcão da farmácia onde vai trabalhar por 3 décadas e meia, deixará poemas manuscritos em notas fiscais. Quando se aposentar, sentado no quintal da frente, diante do velho fícus plantado por seu pai, comporá cantos a canivete. Num galho desse fícus alguém lerá uma linda quadrinha, que somente o fiscal do INSS lera antes:

Dia de ser laureado pelo patrão
O patrão celeste que é quem diz da vida da gente o sim e o não
Nenhum banqueiro, industrial ou fazendeiro
Ficarei velho, pobre, poeta sempre faceiro

EVELYN: A noite será para sonhar com um longo corredor estreito com árabes correndo de atrás. Quando chegar diante a uma alta grade de madeira, ali escreverá, numa folha de caderno desdobrada desde a buchinha um lamento: por que esses moços árabes correm atrás de mim e me perguntam coisas numa língua que eu não entendo? E ainda este desabafo: pior do que ter estranhos lhe perseguindo é não ter ninguém. Um sonhólogo experiente que, antes desse sonho de Evelyn decifrara outros 140 sonhos, afirmará que tudo não passa do medo do novo. E que sonhar melhor é questão de treinamento. Como um exercício de corrida de revezamento: a cada sonho bom que entra na cachola outros ruins se vão. Ainda que nada disso seja muito científico.

LÚCIA: Lúcia cuide de passarinhos feridos. Bem-te-vis, canários e sabiás em especial. Trinca-ferro vai ser mais resistente e de tão teimoso não vai assim ao médico ou ao xamã por qualquer coisinha, exceto se for ameaça de ferrugem. Prepare remédios e emplastros quando sentir que os pássaros já não mais dominam os céus. Cada ave pedirá uma pílula diferente, pois o que não for para o seu bico nem adianta enfiar goela abaixo. Mais do que sinal de liberdade, voar é um costume: fácil de se perder, mas um tanto complicado de se aprender.

LUÍS CARLOS: Ninguém se lembrará de Luís Carlos. Se lembrarem dele será de duas coisas, apenas: seu bigodinho superbem aparado num rosto rechonchudo e do seu rosto rechonchudo sem qualquer bigodinho ou bigode. Alguns preferirão ele com bigode: a esposa; outros, sem bigodinho: os filhos. Algumas coisas realmente são inconciliáveis.

RAFAEL: A namorada vai lhe pedir paciência. O padre vai lhe pedir paciência, ainda que de outro tipo. O goleiro do time vai lhe pedir paciência, levando gol atrás de gol. Vão lhe pedir um pouco de dinheiro também entre uma paciência e outra, a namorada, o padre e o goleiro. Seu advogado pedirá, além dos honorários, paciência, sendo que para outra Constituição só com muitas novas leis, dirá enfático, tentando convencê-lo de que o mundo só se muda pelas leis mas as leis são difíceis de se mudar. De dia, a noite lhe pedirá paciência, pois é preciso esperar o sol se cansar da gente antes de qualquer outra coisa. Um homem gentil vai lhe pedir paciência, pacienciosamente. O piloto, em plena queda livre lhe pedirá também paciência, o galo, o lobo, a matilha de lobos, o valentão, exemplos de paciência ao atropelá-lo, acordá-lo antes das seis, bicá-lo e mordê-lo, todos em nome da paciência, cada um a seu modo, em seu tempo e linguagem. Ao menos será tudo em nome da paciência, nunca da clemência, porque esta, sim, pode ser vil e cruel com a gente. O bêbado lhe pedirá um gole do trago, pedindo nada mais não.

[...]
Continuamos, com muito orgulho, neste MÊS das MÃES, rendendo homenagens a uma grande amiga: a MÃE NANA. Mesmo sendo freira, Mãe Nana é a que teve 140 filhos e determinou o destino de cada um deles logo que os ia parindo e batizando ao som do blues, do samba e do brega, suas paixões musicais de toda uma vida, bem comprida, aliás. Para não se atrapalhar, a Mãe Nana anotou o destino, pois que maternidade é destino, de cada um dos 140 filhos num caderno de contas que desde 2014 venho digitando. Hoje lhes apresentei mais 05 dos filhos de Nana.

* Qualquer semelhança com a ficção é a mera realidade.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)

P. S.: Pintura por Pino Daeni (1939-2010)








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