OS
140 FILHOS DE MÃE NANA – parte 4
ARNALDO:
Meu filho, Arnaldo, será poeta. Porque ao menos um desta família
de lua terá que ser artista pra deixar a vida menos medíocre ou
mais grandiosamente incompreensível. Daí já se percebe que seu
destino não será fácil nem vultoso. Poemas surgirão e ficarão
pelos bares, vendo o jogo do Grêmio, esquecidos. No balcão da
farmácia onde vai trabalhar por 3 décadas e meia, deixará poemas
manuscritos em notas fiscais. Quando se aposentar, sentado no quintal
da frente, diante do velho fícus plantado por seu pai, comporá
cantos a canivete. Num galho desse fícus alguém lerá uma linda
quadrinha, que somente o fiscal do INSS lera antes:
Dia
de ser laureado pelo patrão
O
patrão celeste que é quem diz da vida da gente o sim e o não
Nenhum
banqueiro, industrial ou fazendeiro
Ficarei
velho, pobre, poeta sempre faceiro
EVELYN:
A
noite será para sonhar com um longo corredor estreito com árabes
correndo de atrás. Quando chegar diante a uma alta grade de madeira,
ali escreverá, numa folha de caderno desdobrada desde a buchinha um
lamento: por que esses moços árabes correm atrás de mim e me
perguntam coisas numa língua que eu não entendo? E ainda este
desabafo: pior do que ter estranhos lhe perseguindo é não ter
ninguém. Um sonhólogo experiente que, antes desse sonho de Evelyn
decifrara outros 140 sonhos, afirmará que tudo não passa do medo do
novo. E que sonhar melhor é questão de treinamento. Como um
exercício de corrida de revezamento: a cada sonho bom que entra na
cachola outros ruins se vão. Ainda que nada disso seja muito
científico.
LÚCIA:
Lúcia cuide de passarinhos feridos. Bem-te-vis, canários e
sabiás em especial. Trinca-ferro vai ser mais resistente e de tão
teimoso não vai assim ao médico ou ao xamã por qualquer coisinha,
exceto se for ameaça de ferrugem. Prepare remédios e emplastros
quando sentir que os pássaros já não mais dominam os céus. Cada
ave pedirá uma pílula diferente, pois o que não for para o seu
bico nem adianta enfiar goela abaixo. Mais do que sinal de liberdade,
voar é um costume: fácil de se perder, mas um tanto complicado de
se aprender.
LUÍS
CARLOS: Ninguém se lembrará de Luís Carlos. Se lembrarem dele
será de duas coisas, apenas: seu bigodinho superbem aparado num
rosto rechonchudo e do seu rosto rechonchudo sem qualquer bigodinho
ou bigode. Alguns preferirão ele com bigode: a esposa; outros, sem
bigodinho: os filhos. Algumas coisas realmente são inconciliáveis.
RAFAEL:
A namorada vai lhe pedir paciência. O padre vai lhe pedir
paciência, ainda que de outro tipo. O goleiro do time vai lhe pedir
paciência, levando gol atrás de gol. Vão lhe pedir um pouco de
dinheiro também entre uma paciência e outra, a namorada, o padre e
o goleiro. Seu advogado pedirá, além dos honorários, paciência,
sendo que para outra Constituição só com muitas novas leis, dirá
enfático, tentando convencê-lo de que o mundo só se muda pelas
leis mas as leis são difíceis de se mudar. De dia, a noite lhe
pedirá paciência, pois é preciso esperar o sol se cansar da gente
antes de qualquer outra coisa. Um homem gentil vai lhe pedir
paciência, pacienciosamente. O piloto, em plena queda livre lhe
pedirá também paciência, o galo, o lobo, a matilha de lobos, o
valentão, exemplos de paciência ao atropelá-lo, acordá-lo antes
das seis, bicá-lo e mordê-lo, todos em nome da paciência, cada um
a seu modo, em seu tempo e linguagem. Ao menos será tudo em nome da
paciência, nunca da clemência, porque esta, sim, pode ser vil e
cruel com a gente. O bêbado lhe pedirá um gole do trago, pedindo
nada mais não.
[...]
Continuamos,
com muito orgulho, neste MÊS das MÃES, rendendo homenagens a uma
grande amiga: a MÃE NANA. Mesmo sendo freira, Mãe Nana é a que
teve 140 filhos e determinou o destino de cada um deles logo que os
ia parindo e batizando ao som do blues, do samba e do brega, suas
paixões musicais de toda uma vida, bem comprida, aliás. Para não
se atrapalhar, a Mãe Nana anotou o destino, pois que maternidade é
destino, de cada um dos 140 filhos num caderno de contas que desde
2014 venho digitando. Hoje lhes apresentei mais 05 dos filhos de
Nana.
*
Qualquer semelhança com a ficção é a mera realidade.
(c.
a. albani da silva, o inventor do vento)
P.
S.: Pintura por Pino Daeni (1939-2010)
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