segunda-feira, 13 de maio de 2019

UM CHIMARRÃO ABOLICIONISTA



UM CHIMARRÃO ABOLICIONISTA

Ferveu a água, cevou o mate no porongo plantado em casa, meteu a bomba de ferro e saiu ruminando sobre a ABOLIÇÃO da ESCRAVIDÃO no jardim de sua biblioteca em Gravataí. Estou falando do vovô anarquista, Jamboré Jucundô, que vive no auge dos seus 88 anos e decidiu neste 13 de Maio conversar com alguns protagonistas da Abolição.

O vovô sabe que a Abolição foi o primeiro grande movimento popular a incendiar o Brasil politicamente. Passados apenas 131 anos da Abolição, ele também sabe que a escravidão durou cerca de 350 anos no país. O primeiro convidado da roda de chimarrão, JOAQUIM NABUCO (1849-1910) foi quem falou que, infelizmente, a escravidão sempre existiu, no Mundo Antigo e Medieval (maquiada de feudalismo), conforme pesquisou para o seu livro de 1883, O ABOLICIONISMO. Porém, a escravidão moderna foi quem trouxe milhões de escravos da África negra (Nigéria, Congo, Angola, Moçambique), a partir de 1500, para as Américas. Assim a escravidão negra virou o primeiro grande NEGÓCIO CAPITALISTA em escala global, movimentando fortunas de dinheiro.

Sem escravos negros não haveria a indústria do açúcar, do café, a grande extração de ouro e prata de rios e montanhas das Américas, a indústria do tabaco, do cacau, do algodão. Em nome desses lucros, os empresários e os piratas do mar e da terra, com incentivo dos reis colonizadores da França (no Canadá, Haiti, Guiana), da Inglaterra (no Canadá, EUA, Jamaica, Guiana), da Holanda (no Suriname, no Mar do Caribe), do Portugal (Brasil), na Espanha (do México à Argentina), esses piratas empreendedores chegaram até mesmo a usar a religião para justificar o trabalho escravo: os africanos eram pecadores por seguirem seus orixás e desconhecerem a Bíblia ou o Cristo: assim deveriam purgar com a escravidão para alcançarem a salvação da alma.

Todos paramos para ouvir o trágico canto do poeta baiano Antônio de CASTRO ALVES (1847-1871), VOZES D´ÁFRICA (1870) que, quase no final do poema, diz assim “Cristo! Embalde morreste sobre um monte… / Teu sangue não lavou de minha fronte / A mancha original”. Essa baboseira religiosa, muito oportunista e interesseira, multiplicada por toda a crueldade e a violência do regime escravocrata deixou para nós, além do profundo mal do RACISMO, como também, uma aguda desigualdade social entre todos os herdeiros da escravidão, nas favelas, mangues e periferias urbanas, de um lado, e os herdeiros dos colonizadores donos de escravos e de terras, por outro lado.

Veja que o direito de PROPRIEDADE era tão esdrúxulo e, ao mesmo tempo, tão poderoso que muito fazendeiro queria ser indenizado após a LEI ÁUREA. Por isso, e quem toma a palavra é o famoso ministro da Fazenda do primeiro presidente do Brasil, o RUY BARBOSA (1849-1923), que nos contou que mandou queimar, em 1890, todos os documentos nacionais da alfândega e das aduanas que anotavam as matrículas de compra e venda de escravos. É que a elite é muito agarrada aos seus privilégios e interesses, tanto que, na época, gente como o Visconde de Rio Branco (1871) e o Barão de Cotegipe (1885) fizeram a Lei do Ventre Livre e, depois, a Lei dos Sexagenários: aparentando ser leis bonitas e lindas, elas empurravam para frente a vida da escravidão no Brasil. Vovô sentiu no ar uma indireta para não comprarmos uma certa marca de erva-mate.

Então eu perguntei: mas por que a escravidão caiu no século XIX em vários países do mundo? Primeiro, porque a própria burguesia europeia vivia a industrialização desde 1800, com máquinas a vapor para fazer roupas e outras coisas. Assim era necessário trocar o trabalhador escravizado pelo trabalhador assalariado que gastava seu magro salário comprando as próprias roupas que fazia e outras mercadorias que produzia em larga escala numa economia capitalista de massas só possível com a invenção das fábricas. Segundo, porque a luta por liberdade de todos os escravos nas Américas, com seus QUILOMBOS, somou-se ao pensamento revolucionário da Revolução Francesa de 1789. Quando o partido jacobino teve oportunidade ele aboliu a escravidão em Paris e nas colônias francesas. Assim, numa mistura de luta pela independência contra a colonização europeia e de luta contra a escravidão, o Haiti, em 1790, numa imensa revolta negra, acabou com o regime de escravos. O que foi se espalhando por outros países americanos, passando pelo México em 1829, pelos EUA após uma guerra civil, em 1865, Cuba e Porto Rico em 1886 e, por último, o Brasil em 1888.

Quem nos contou isso foi o engenheiro ANDRÉ REBOUÇAS (1838-1898): homem negro que, com seu irmão Antônio, cortou ferrovias na Serra do Mar e foi morrer na ilha da Madeira porque era amigo do rei Dom Pedro II, mas defendia a reforma agrária. Nos disse uma grande verdade: o negro liberto da escravidão, mas continuando SEM TERRA onde morar e plantar, virará potencialmente um miserável na cidade grande…

A Princesa Isabel do Brasil (1846-1921) não veio. Ela acha muito vulgar compartilhar a baba dos outros tomando chimarrão gaudério e não gostaria de queimar a sua nobre língua, da família Bragança, com a água quente já que de uns tempos pra cá é candidata a santa! Isabel, filha de Pedro II, foi quem assinou a lei de 13/05 de 1888, mas ela não só não gostava de política, como teve vários escravos. Foi pouco popular no Rio de Janeiro, na serra de Petrópolis em seu tempo, pois era bastante bajuladora do arrogante marido, um francês chamado Conde D´Eu e metido a super-herói... A fama de REDENTORA foi invenção do jornalista JOSÉ do PATROCÍNIO (1854-1905): fundador da Sociedade Abolicionista Brasileira em 1880, ao lado do André e do Joaquim, José era um amigo da monarquia brasileira que foi derrubada em 15/11 de 1889 por um golpe militar (em parte, porque a escravidão tinha acabado um ano antes).

José também fundou a Academia Brasileira de Letras em 1897, ao lado do genial Machado de Assis (que não quis tomar chimarrão e ficou calado de pé, com a mão na barriga, nos observando atentamente com cara de triste). José escreveu três romances, um sobre a pena de morte: MOTA COQUEIRO, em 1877. José inventou até o dirigível Santa Cruz que, infelizmente, nunca voou. Veja que esses homens negros que saíram da maldição da senzala vinham de famílias mestiças cheias de dramas: José do Patrocínio era filho bastardo de um padre com a sua escrava. Curiosamente, o filho de José, o ZECA, ou Patrocínio Filho, foi um escritor de sucesso, embora fora dos cânones dos manuais de literatura brasileira: em 1927 vendeu 3 mil exemplares das crônicas A SINISTRA AVENTURA: REMINISCÊNCIAS DAS PRISÕES INGLESAS, quando, viajando pela Inglaterra a trabalho, no 07/09 de 1917, foi preso suspeito de espionagem nos tempos da ultranacionalista e ultracapitalista I Guerra Mundial (1914-1918)! Inclusive conta que se apaixonou pela bailarina e espiã Mata Hari!

Zeca Filho ganhou fama de hábil mentiroso, tanto que ninguém menos que o poeta Manuel Bandeira teria visto o morto tentar sambar dentro do seu caixão quando quem tocava no velório de Zeca, em 1929, era o sambista SINHÔ. Assim como, pouco antes disso, muito doente, um médico lhe recomendou como melhor remédio para meningite o leite materno. Ao ver a bela enfermeira que o trataria, pediu ao médico que a posologia do medicamento fosse feita com ele mamando…

Já o abolicionista LUIZ GAMA (1830-1882) teve uma vida de reviravoltas cinematográficas: filho de um fidalgo, ou seja, de um colonizador português rico e metido a nobre com uma escrava que fazia doces na Bahia. Sua mãe aderiu a rebelião dos escravos muçulmanos de Salvador, a REVOLTA dos MALÊS, em 1835, e ele foi vendido pelo pai para pagar as dívidas de jogo. Só com 18 anos, e trabalhando na biblioteca de um delegado, conseguiu comprovar que havia nascido livre. Formado como advogado popular (um rábula sem diploma) foi para São Paulo advogar pela liberdade dos negros, escrevendo poemas satíricos e juntando fundos para a abolição. Dizem que assim libertou 500 escravos e colocou numa escolinha, patrocinada pela maçonaria, outras 200 crianças. Em 1859 publicou o livro TROVAS BURLESCAS de GETULINO onde anotou no poema QUEM SOU EU? os versos: Tenho mui poucos amigos / Porém bons, que são antigos / Fujo sempre à hipocrisia / À sandice, à fidalguia / Das manadas de Barões? / … / Faço versos / não sou vate / Digo muito disparate / Mas só rendo obediência / À virtude / à inteligência: / Eis aqui o Getulino…

Falando em livros, recebemos, já servindo o mate doce, com açúcar e água quente, ao anoitecer, com o friozinho chuvoso de outono, a professora MARIA FIRMINA dos REIS (1825-1917): professora do ensino básico por quase 40 anos. A MARANHENSE, como assinou seus poemas (Cantos à beira-mar, 1871), contos (A escrava, 1887), Úrsula (1859), este o primeiro romance escrito por mulher no Brasil e trazendo nas suas páginas uma personagem como Mãe Suzana que relembrou sua vida de escrava no livro mas não se dispôs a ajudar o antigo patrão, Fernando.

Ainda precisamos abolir muitas coisas ruins que a escravidão nos deixou de herança.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)

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