quarta-feira, 29 de maio de 2019

LIVROS de VIAGEM #51



LIVROS de VIAGEM #51
* Aos geógrafos do imaginário

Pensamento da Sylva costuma se encontrar com o Prof. Linduarte Cantor, o músico Tremenda Luz e o jegue Nick Nivaldo para conversarem sobre seus LIVROS de VIAGENS prediletos.

Todos concordam que a vida é uma viagem. E que tem gente que viaja na maionese, facilmente. E que bater perna pelo mundo é muito inspirador. Todos eles gostam de desenhar mapas. Mais ou menos inventados. Mais ou menos coloridos.

Prof. Linduarte inclusive se recorda, não sem grande desapontamento que, o primeiro livro de história e geografia que leu com tesão, e muito lhe marcou a vida, era uma grande viagem pela aventura da arqueologia: desde quando a Turquia foi escavada, em 1872, atrás da antiga Troia, passando pelo Iraque da Torre de Babel até o México dos astecas, enfim, era um livro muito bem escrito, mas que foi obra de um autor nazista: que desgraça! Sim, DEUSES, TÚMULOS e SÁBIOS (1949) foi o livro feito por um tal C. W. CERAM que era pseudônimo criado justamente para encobrir o passado do senhor Kurt Wilhelm Marek (1915-1972). O cara foi, por anos, do departamento de publicidade e propaganda de Hitler! E é difícil acreditar que, quando acabou a II Guerra Mundial, ele tenha se arrependido da visão política de extrema-direita: ultracapitalista, autoritária, fanática em nome da sua pátria, da sua “raça” (não existem raças humanas, porra!) e do macho viril-militar que, vira e mexe, tenta conquistar o mundo, geralmente fingindo que não é nada disso, mas que é um bom cristão. Ceram foi o primeiro editor, em 1959, de um livro, o diário de uma alemã estuprada (Marta Hillers), chamado UMA MULHER em BERLIM, que atacava o Exército Vermelho, ou seja, falava mal dos soldados da Rússia comunista soviética que derrotaram o nazismo em 1945.

Pensamento da Sylva, vendo a decepção do Professor ao lembrar de uma marcante leitura juvenil, que revelou ao adulto um autor que lhe traiu profundamente, resolveu então trocar de assunto e lembrou que, em 1936, o presidente Getúlio Vargas criou o IBGE justamente em 29/05, por isso a comemoração do dia do geógrafo nesta data. Assim, a partir de 1940, o Brasil passou a ter um censo a cada dez anos mapeando o povo e o território nacional. Mas qual o livro de viagens que você recomenda, Da Sylva, ao caro leitor que nos lê? Retomou, mais sereno, o Professor Linduarte.

Pensamento da Sylva escolheu uma obra religiosa. Mas que também é exercício de ficção científica pura. Muito antes de Júlio Verne e H. G. Wells, no século XIX, criarem o estilo sci-fi, viajando à Lua e ao ano 802701 d.C., o padre ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697) foi um jesuíta português que catequizou (mesma coisa que evangelizar) o Brasil Colônia, escrevendo famosos SERMÕES e CARTAS que viraram clássicos da arte barroca na América Latina. Ah! Como toda viagem é uma viagem no tempo, eu indico o Vieira quando ele deu uma de profeta e, no livro póstumo, HISTÓRIA do FUTURO (1718), o moço resolveu narrar o dia em que o Portugal fosse dominar o mundo: um Quinto Império mundial (depois dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos). O padre estava empolgado, já que os portugueses na época dele estavam colonizando o Brasil, a África, a Índia, a China, o Japão e até o Timor. Embora otimista, o moço teve que dar muitas explicações para a censura religiosa no Tribunal da Inquisição. Coisa de briga política entre as seitas jesuítas e os dominicanos, entre colonizadores, escravocratas e padres na colônia, por causa dos índios, entre cristãos e judeus, lusos, castelhanos e holandeses nos reinos europeus.

Não é católico o meu amigo Pensamento da Sylva, mas ele sabe que todo futurista tem a cabeça no passado e todo o viajante no tempo viaja também no espaço, porque só no espaço existe o tempo e vice-versa. O espaço também é um lugar imaginário feito dos afetos, das lembranças, das práticas, das limpezas e sujeiras com que ocupamos as paisagens naturais, rurais ou urbanas do mundo.

Veja o Padre Vieira: sonhava com o futuro ele mesmo viajando pelas águas do oceano Atlântico entre Portugal e o Brasil (e o cara andou pelo Brasil por mais de 50 anos: por terras do Norte e do Nordeste, colônia adentro), mas viajava ainda mais no tempo mágico da sua cabeça, lendo as trovas do sapateiro e profeta popular Gonçalves BANDARRA (1500 – 1556) que dizia que Dom Sebastião voltaria não só como o rei de Portugal, depois de sumir no Marrocos em 1578, brigando com os muçulmanos, mas voltaria para governar todo o planeta. Assim como, encontrava nas antigas SIBILAS romanas (mulheres como Eritreia e Cumas que viam o futuro na Roma Antiga) e na poesia do famoso poeta VIRGÍLIO, também ele romano da Antiguidade, pistas para o futuro do seu povo português. Estava perfeitamente claro na cabeça do Padre Antônio Vieira também que, o dia de amanhã, para o reino de Portugal, aparecia escrito até no livro do profeta Isaías, da Bíblia, com sua pena de hebreu que viveu 700 anos antes de Cristo lá no Oriente Médio sem nem saber de Portugal bosta nenhuma, na época, terra de celtas e gauleses.

Nick Nivaldo compreendeu que o sonho de viajar para o futuro é, realmente, desejo antigo e profundo em muita gente. Burra ou inteligente, tanto faz, sagrada ou profana, não importa. Porém, para ele, viagem maior não há, e mapa algum um dia ficará completo, enquanto a viagem maior não for a do AMOR. Todos concordaram com o jegue que o amor é viagem sem volta.

Nivaldo trouxe, então, para a conversa, o livro DIÁLOGOS de AMOR, do médico judeu LEÓN HEBREO (1460-1521), perseguido pelos cristãos por seu judaísmo, que viveu em Portugal, na Espanha e na Itália. Era da família Abravanel, que já era, no Renascimento europeu, formada por burgueses e burocratas, no tempo do reino de Castela.

Para León, o amor é a motivação, a sustentação e o fim de todas as viagens. Ou seja, é ele o que nos motiva a cair na estrada da vida, a seguir caminhando mesmo com os pés cansados e a única recompensa plena da vida é o amor. Tremenda Luz alfinetou o pensamento platônico, portanto idealista, de León e, por conseguinte, do jegue Nivaldo, dizendo: pois é, mas cada um tem um amor diferente, não é mesmo? Um homem, uma mulher, os filhos, a profissão, a religião, os vícios, o poder, o dinheiro… Outros amam viajar, por exemplo! Respondeu o jegue.

Mas foi o cantor Da Luz quem continuou a palestra: minha última viagem agora foi viajar com o primeiro grande escritor da América Latina: Inca Garcilaso de La Vega. Ele fez a grande viagem que, quase todos nós, nascidos entre o Alaska e a Terra do Fogo, ou seja, entre quem vive no continente americano desde 1500, tem de enfrentar na vida.

INCA GARCILASO de LA VEGA (1539-1616) foi metade conquistador e metade conquistado. Era filho de Sebastião, um nobre do império espanhol com uma princesa do império inca, a bela Chimpu Ocllo. Nasceu na cidade de Cuzco, no Peru, no tempo em que Francisco Pizarro atacava os índios governados por Atahualpa. Curiosamente, seu pai muito tentou voltar para a terra natal, na Europa, mas não conseguiu. Por brigas políticas, entre os próprios colonizadores espanhóis, foi proibido de retornar e assim morreu na América. Já o escritor Inca Garcilaso de la Vega foi quem voltou para a Espanha atrás de metade do seu passado, dos estudos e das posses da família. Lá escreveu dois livros importantes: FLORIDA del INCA, em 1605, sobre Hermano de Soto e Juan Ponce de León, outros dois conquistadores e viajantes espanhóis da América, como o seu velho pai tinha sido. E, principalmente, escreveu o livro COMENTÁRIOS REAIS onde, entre outras coisas, ele explica o povo inca aos europeus. Aliás, o autor viveu a maldição reversa do pai: queria voltar para o Peru e desgraçadamente nunca conseguiu.

Garcilaso não era bobo, querido leitor. Ele foi criado pela mãe, portanto, ele sabia falar bem a grande língua dos índios da Cordilheira dos Andes: o quéchua. Inclusive sabia fazer os nós do quipu: o genial sistema de escrita e de cálculos dos índios andinos feito com fios e cordões. Para ele, os incas seriam os romanos das Américas e estariam prontos para receber o povo espanhol e sua fé cristã, já que adoravam o Sol, a Lua e a Serpente Emplumada, de um jeito não muito diferente dos europeus que falavam em Deus Pai, Deus Filho e Espírito Santo.

O problema dessa viagem, a da colonização moderna dos europeus por aqui, na América colonial, começada com Colombo em 1492, foi um problema de tradução para o Inca de la Vega: os tradutores incas, assim como, os tradutores espanhóis, distorceram os discursos dos viajantes e dos nativos indígenas, assim, tudo acabou em briga generalizada e desentendimento, entre eles, desde então.

Prof. Linduarte Cantor serviu chá quente de hortelã e chá de macela a todos os presentes. Depois lembrou que foi o Inca Garcilaso de la Vega quem traduziu do italiano toscano, para o espanhol castelhano, o livro sobre o amor medieval de LEÓN HEBREO, o mesmo que o jegue Nivaldo havia lido e comentado antes.
O Professor concluiu dizendo assim: todo bom geógrafo do imaginário sabe muito bem que não existe maior viagem do que a viagem da leitura.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)

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