LIVROS
de VIAGEM #51
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Aos geógrafos do imaginário
Pensamento
da Sylva costuma se encontrar com o Prof. Linduarte Cantor, o músico
Tremenda Luz e o jegue Nick Nivaldo para conversarem sobre seus
LIVROS de VIAGENS prediletos.
Todos
concordam que a vida é uma viagem. E que tem gente que viaja na
maionese, facilmente. E que bater perna pelo mundo é muito
inspirador. Todos eles gostam de desenhar mapas. Mais ou menos
inventados. Mais ou menos coloridos.
Prof.
Linduarte inclusive se recorda, não sem grande desapontamento que, o
primeiro livro de história e geografia que leu com tesão, e muito
lhe marcou a vida, era uma grande viagem pela aventura da
arqueologia: desde quando a Turquia foi escavada, em 1872, atrás da
antiga Troia, passando pelo Iraque da Torre de Babel até o México
dos astecas, enfim, era um livro muito bem escrito, mas que foi obra
de um autor nazista: que desgraça! Sim, DEUSES, TÚMULOS e SÁBIOS
(1949) foi o livro feito por um tal C. W. CERAM que era pseudônimo
criado justamente para encobrir o passado do senhor Kurt Wilhelm
Marek (1915-1972). O cara foi, por anos, do departamento de
publicidade e propaganda de Hitler! E é difícil acreditar que,
quando acabou a II Guerra Mundial, ele tenha se arrependido da visão
política de extrema-direita: ultracapitalista, autoritária,
fanática em nome da sua pátria, da sua “raça” (não existem
raças humanas, porra!) e do macho viril-militar que, vira e mexe,
tenta conquistar o mundo, geralmente fingindo que não é nada disso,
mas que é um bom cristão. Ceram foi o primeiro editor, em 1959, de
um livro, o diário de uma alemã estuprada (Marta Hillers), chamado
UMA MULHER em BERLIM, que atacava o Exército Vermelho, ou seja,
falava mal dos soldados da Rússia comunista soviética que
derrotaram o nazismo em 1945.
Pensamento
da Sylva, vendo a decepção do Professor ao lembrar de uma marcante
leitura juvenil, que revelou ao adulto um autor que lhe traiu
profundamente, resolveu então trocar de assunto e lembrou que, em
1936, o presidente Getúlio Vargas criou o IBGE justamente em 29/05,
por isso a comemoração do dia do geógrafo nesta data. Assim, a
partir de 1940, o Brasil passou a ter um censo a cada dez anos
mapeando o povo e o território nacional. Mas qual o livro de viagens
que você recomenda, Da Sylva, ao caro leitor que nos lê? Retomou,
mais sereno, o Professor Linduarte.
Pensamento
da Sylva escolheu uma obra religiosa. Mas que também é exercício
de ficção científica pura. Muito antes de Júlio Verne e H. G.
Wells, no século XIX, criarem o estilo sci-fi, viajando à Lua e ao
ano 802701 d.C., o padre ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697) foi um jesuíta
português que catequizou (mesma coisa que evangelizar) o Brasil
Colônia, escrevendo famosos SERMÕES e CARTAS que viraram clássicos
da arte barroca na América Latina. Ah! Como toda viagem é uma
viagem no tempo, eu indico o Vieira quando ele deu uma de profeta e,
no livro póstumo, HISTÓRIA do FUTURO (1718), o moço resolveu
narrar o dia em que o Portugal fosse dominar o mundo: um Quinto
Império mundial (depois dos assírios, dos persas, dos gregos e dos
romanos). O padre estava empolgado, já que os portugueses na época
dele estavam colonizando o Brasil, a África, a Índia, a China, o
Japão e até o Timor. Embora otimista, o moço teve que dar muitas
explicações para a censura religiosa no Tribunal da Inquisição.
Coisa de briga política entre as seitas jesuítas e os dominicanos,
entre colonizadores, escravocratas e padres na colônia, por causa
dos índios, entre cristãos e judeus, lusos, castelhanos e
holandeses nos reinos europeus.
Não
é católico o meu amigo Pensamento da Sylva, mas ele sabe que todo
futurista tem a cabeça no passado e todo o viajante no tempo viaja
também no espaço, porque só no espaço existe o tempo e
vice-versa. O espaço também é um lugar imaginário feito dos
afetos, das lembranças, das práticas, das limpezas e sujeiras com
que ocupamos as paisagens naturais, rurais ou urbanas do mundo.
Veja
o Padre Vieira: sonhava com o futuro ele mesmo viajando pelas águas
do oceano Atlântico entre Portugal e o Brasil (e o cara andou pelo
Brasil por mais de 50 anos: por terras do Norte e do Nordeste,
colônia adentro), mas viajava ainda mais no tempo mágico da sua
cabeça, lendo as trovas do sapateiro e profeta popular Gonçalves
BANDARRA (1500 – 1556) que dizia que Dom Sebastião voltaria não
só como o rei de Portugal, depois de sumir no Marrocos em 1578,
brigando com os muçulmanos, mas voltaria para governar todo o
planeta. Assim como, encontrava nas antigas SIBILAS romanas (mulheres
como Eritreia e Cumas que viam o futuro na Roma Antiga) e na poesia
do famoso poeta VIRGÍLIO, também ele romano da Antiguidade, pistas
para o futuro do seu povo português. Estava perfeitamente claro na
cabeça do Padre Antônio Vieira também que, o dia de amanhã, para
o reino de Portugal, aparecia escrito até no livro do profeta
Isaías, da Bíblia, com sua pena de hebreu que viveu 700 anos antes
de Cristo lá no Oriente Médio sem nem saber de Portugal bosta
nenhuma, na época, terra de celtas e gauleses.
Nick
Nivaldo compreendeu que o sonho de viajar para o futuro é,
realmente, desejo antigo e profundo em muita gente. Burra ou
inteligente, tanto faz, sagrada ou profana, não importa. Porém,
para ele, viagem maior não há, e mapa algum um dia ficará
completo, enquanto a viagem maior não for a do AMOR. Todos
concordaram com o jegue que o amor é viagem sem volta.
Nivaldo
trouxe, então, para a conversa, o livro DIÁLOGOS de AMOR, do médico
judeu LEÓN HEBREO (1460-1521), perseguido pelos cristãos por seu
judaísmo, que viveu em Portugal, na Espanha e na Itália. Era da
família Abravanel, que já era, no Renascimento europeu, formada por
burgueses e burocratas, no tempo do reino de Castela.
Para
León, o amor é a motivação, a sustentação e o fim de todas as
viagens. Ou seja, é ele o que nos motiva a cair na estrada da vida,
a seguir caminhando mesmo com os pés cansados e a única recompensa
plena da vida é o amor. Tremenda Luz alfinetou o pensamento
platônico, portanto idealista, de León e, por conseguinte, do jegue
Nivaldo, dizendo: pois é, mas cada um tem um amor diferente, não é
mesmo? Um homem, uma mulher, os filhos, a profissão, a religião, os
vícios, o poder, o dinheiro… Outros amam viajar, por exemplo!
Respondeu o jegue.
Mas
foi o cantor Da Luz quem continuou a palestra: minha última viagem
agora foi viajar com o primeiro grande escritor da América Latina:
Inca Garcilaso de La Vega. Ele fez a grande viagem que, quase todos
nós, nascidos entre o Alaska e a Terra do Fogo, ou seja, entre quem
vive no continente americano desde 1500, tem de enfrentar na vida.
INCA
GARCILASO de LA VEGA (1539-1616) foi metade conquistador e metade
conquistado. Era filho de Sebastião, um nobre do império espanhol
com uma princesa do império inca, a bela Chimpu Ocllo. Nasceu na
cidade de Cuzco, no Peru, no tempo em que Francisco Pizarro atacava
os índios governados por Atahualpa. Curiosamente, seu pai muito
tentou voltar para a terra natal, na Europa, mas não conseguiu. Por
brigas políticas, entre os próprios colonizadores espanhóis, foi
proibido de retornar e assim morreu na América. Já o escritor Inca
Garcilaso de la Vega foi quem voltou para a Espanha atrás de metade
do seu passado, dos estudos e das posses da família. Lá escreveu
dois livros importantes: FLORIDA del INCA, em 1605, sobre Hermano de
Soto e Juan Ponce de León, outros dois conquistadores e viajantes
espanhóis da América, como o seu velho pai tinha sido. E,
principalmente, escreveu o livro COMENTÁRIOS REAIS onde, entre
outras coisas, ele explica o povo inca aos europeus. Aliás, o autor
viveu a maldição reversa do pai: queria voltar para o Peru e
desgraçadamente nunca conseguiu.
Garcilaso
não era bobo, querido leitor. Ele foi criado pela mãe, portanto,
ele sabia falar bem a grande língua dos índios da Cordilheira dos
Andes: o quéchua. Inclusive sabia fazer os nós do quipu: o genial
sistema de escrita e de cálculos dos índios andinos feito com fios
e cordões. Para ele, os incas seriam os romanos das Américas e
estariam prontos para receber o povo espanhol e sua fé cristã, já
que adoravam o Sol, a Lua e a Serpente Emplumada, de um jeito não
muito diferente dos europeus que falavam em Deus Pai, Deus Filho e
Espírito Santo.
O
problema dessa viagem, a da colonização moderna dos europeus por
aqui, na América colonial, começada com Colombo em 1492, foi um
problema de tradução para o Inca de la Vega: os tradutores incas,
assim como, os tradutores espanhóis, distorceram os discursos dos
viajantes e dos nativos indígenas, assim, tudo acabou em briga
generalizada e desentendimento, entre eles, desde então.
Prof.
Linduarte Cantor serviu chá quente de hortelã e chá de macela a
todos os presentes. Depois lembrou que foi o Inca Garcilaso de la
Vega quem traduziu do italiano toscano, para o espanhol castelhano, o
livro sobre o amor medieval de LEÓN HEBREO, o mesmo que o jegue
Nivaldo havia lido e comentado antes.
O
Professor concluiu dizendo assim: todo bom geógrafo do imaginário
sabe muito bem que não existe maior viagem do que a viagem da
leitura.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)
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