sexta-feira, 23 de maio de 2014

Dia Nublado (Versão II – Laboratório de Sons do Vento)

Takashi Murakami, 727, 1996


Tarde dum domingo de Inverno em 2005:
Frio, chuva e melancolia
Raul Seixas cantou
Tinha visita estranha na sala!
Não passei a vista no jornal
Mas me tranquei no quarto mesmo assim
Pra não precisar fingir estar alegre quando estava triste
Ou triste quando estava alegre
Dá no mesmo...

O Irmão do Vento
Havia se casado há pouco
E deixou algumas de suas boas tralhas na casa dos pais, do irmão mais novo
Aquário; peixes dentro do aquário; quadro de um Jaguar preto: o carro anglo-hindu, não a onça das américas
A melhor das tralhas
Uma máquina de escrever Olivetti, ainda com fita vermelha - a preta tinha acabado...
Máquina-símbolo: das últimas representantes da fortuna de empresários do escritório antes da fortuna de empresários da computação
(Oh! Oh! Oh! João, técnico em computação...)
Dei de bater uns poemas bestas chamados “A poesia de um louco”
Devo ter criado umas 50 dessas poesias pra louco
Tive a sabedoria de logo em seguida jogá-las todas fora

Mas nesse exercício de criatividade
Tal qual o poeta Amaro Flores Castilhos
De Cachoeirinha/RS
Que ainda compõe seus versos ao som do tec-tec de uma Olivetti
Datilografei as 20 estrofes
De “O dia vai ser nublado”
O lixo não levou estas estrofes
Pois gostei delas
Como gostei de muitas meninas
Desde então
Desde sempre

Em Agosto de 2010 tentei transformar essas 20 estrofes do poema em música
Um samba na guitarra
Bah! Era como se uma cadeirante tivesse sido escolhida para globeleza
Haja visto a falta de molejo daqueles acordes
Ainda assim arrisquei uma gravação caseira – tão deficiente quanto o arranjo original do som
É que faria dali uns dias a minha primeira viagem de avião
Se o pássaro de metal se esborrachasse no chão, ou nalguma nuvem enganadoramente frágil e branca, mas pétrea como muitos corações, ou se algum anjo mal intencionado ou urubu mesmo nos abatesse em pleno voo
A canção poderia sobreviver frente ao Tempo inclemente e à ausência

Em 2013
5773 anos desde o engano divino que gerou o mundo, conforme os hebreus
Publiquei as 20 estrofes de “O dia vai ser nublado” numa coletânea literária, lançada na Feira do Livro de Gravataí
Na mesma época
Tocando no “1º Sarau ‘Ray Bradbury’ da Canção Cósmica”, em Tyrr - planeta mais conhecido pelos terráqueos como Marte -
gravei, ao vivo, com os Sci Fi Boys (Verne, Orwell, Huxley, Asimov, Dick, Clark) uma versão psicodélica da canção

Nesta semana de Maio de 2014
Lua Minguante lá em cima a nos olhar de esguelha
28 anos depois
Da tarde divina
Em que Maria
Deu à luz
Não a um Jesus
Mas a este Inventor de Ventos
Revisito àquele “Dia Nublado” de 2005
Ao menos nublado na minha imaginação
Pois que chovia, água, frio e melancolia 
No mundo lá fora: de concreto, asfalto e outros que tais chamados, em síntese, realidade.


O Dia Vai Ser Nublado
(C. A. Albani da Silva)

O João levantava tão cedo que não era mais preciso dormir
Ele que acordava o galo para o galo cantar
O João por causa disso nem conseguia mais sonhar
O que era um problema, pois ganhava dinheiro e não sabia onde gastar

João
Meu irmão

O João tinha um velho amigo que se chamava José
O José pretendia estudar filosofia
Tomou um empréstimo do banco para pagar a faculdade
E logo aprendeu que no mundo não há apenas uma verdade

José
Filósofo

O José tinha uma namorada que se chamava Maria
Tão meiga quanto uma flor seja de noite ou de dia
Num fim de semana qualquer em que José estudava a sociedade
Maria saiu com Marcelo e acabou aprontando algumas sacanagens

Maria
Mamãe

Na casa da Maria trabalhava um pedreiro que costumava contar umas histórias
Dizia que havia viajado pros EUA
Lá ganhava muita grana trabalhando de frentista num posto
Mas ele abandonou o Tio Sam porque sentia saudades do nosso café

Café
No bule

O pedreiro tinha uma irmã que frequentava uma comunidade espírita
A irmã dizia reencarnar a Luíza Mahin
Esta, por sua vez, reencarnava a Cleópatra
Sua sina era lutar pela liberdade sem fim

Abaixo com os grilhões
Ponham isso nas Constituições

A irmã do pedreiro tinha um namorado chamado Leandro
Ponta esquerda do time da loja de sapatos
Na final do campeonato de várzea num domingo ensolarado
O Léo bateu a falta no ângulo e correu pro abraço

Leandro
Campeão

O Leandro era sobrinho de um metalúrgico de esquerda
Líder de um sindicato da categoria
Certa empresa se negava a dar uma cesta e um peru de Natal
Alegando que a crise era grande no mercado internacional

Tio do Leandro
Greve geral

O tio do Leandro era neto do Seu Mathias
Seu Mathias se lembrava saudoso dos tempos de Getúlio Vargas
Contava que esteve presente na inauguração da Petrobrás
E acreditava que Getúlio tinha sido assassinado

Seu Mathias
Bons tempos que não voltam mais

A segunda esposa do Seu Mathias era descendente de italianos
O avô dela chegou por aqui em 1875
Dona Irene conheceu Seu Mathias num terreiro de umbanda
Casaram-se abençoados por Xangô

Xangô
Iansã

Um dos padrinhos do casamento de Irene era advogado
Especialista em Direito familiar
Todos os filhos de Dr. Antônio também seguiram a advocacia
Era uma grande família de homens da Lei

Vossa Excelência
Doutor

Dr. Antônio teve uma bisneta que não conheceu
A Camila era filha do seu neto mais moço
Ela mandou pro espaço todo esse papo de legislação
E foi embora pra São Paulo estudar teatro

Vitupério
Desgosto pro velho

A Camila teve uma professora chamada Otília
Ela sempre incentivava os seus dotes artísticos
“Sora” Otília havia nascido em Manaus, Amazonas
Sonhava em casar com um francês e ir morar em Paris

Tout comprendre
C´est tout pardonner

“Sora” Otília tinha um irmão que enfiou na cabeça que ia ser cineasta
O Irajara vendeu o seu carro e comprou uma câmera
Tentou fazer uns filmes “cabeça”, mas não obteve nenhum sucesso
Até que alugou um barraco apertado e montou uma empresa de filmes “pornô”

Filmes “cabeça”
Sussurros e gemidos

A Marlene trabalhou por dez anos na “Ira - Prazeres e Produções”
Depois que largou a carreira de atriz fundou uma creche
Aplicou boa parte das suas finanças em obras de caridade
Desfilou nua na rua em protesto pelas Diretas Já

Marlene
José Sarney

A Marlene costumava almoçar e jantar no restaurante do Paulo
O Paulão tocava teclado na paróquia do bairro
Seguido sentia saudades da Juventude Católica
E sempre comentava aos amigos que lá conheceu a mulher

Nossa Senhora do Rosário
Este mundo não tem mais solução

O Paulão não gostava muito do emprego do primo
Pois Luciano era pastor neopentecostal
Também havia se filiado ao Partido dos Trabalhadores
E estava de viagem marcada pra uma reunião do Comitê Regional

Pastor Luciano
Almoço grátis no Paulão

Pastor Luciano era sogro do Pedro
O Pedro era policial militar
Pastor Luciano não gostava nenhum pouco disso
E vivia dizendo pro genro virar guarda municipal

Estimado Pedro
Jesus é o Senhor, Ordem é Progresso

Tenente Pedro era pai do jovem André
O André tocava guitarra numa banda de rock
Apesar do Tenente insistir que música boa era samba e vaneira
Pro André música de verdade era com o Led Zeppelin

André
Stairway to Heaven

O André estava gamado na colega Elisa
A Elisa era a coisa mais linda que ele já tinha visto
Quando Isa passava na escola era como se o mundo inteiro parasse
E a única coisa que se restasse movendo fosse o coração do André

Elisa
Nos pensamentos do André

A Elisa era vizinha do incansável João
Aquele que acordava o galo para o galo cantar
Isa tinha cinco cachorros e uns nove gatos que
Viviam sujando o pátio e roubando as roupas no varal do João

João
Técnico em computação
João
O dia vai ser nublado deu no jornal


Não há início melhor do que um ponto final.

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