segunda-feira, 21 de julho de 2014

Uruguay

Luli Acevedo, Visiones, 2014



Nem só de caracóis vive o Uruguay...
Cheiro de Fruta
(Juana de Ibarbourou, 1895 a 1979)
Tradução de Aurélio Buarque de Holanda, “Grandes vozes líricas hispano-americanas” (1990)

Com marmelos maduros
Perfumo os meus armários.
Tem toda a minha roupa
Um aroma de fruta que ao meu corpo
Dá um constante sabor a primavera.

Quando dos guarda-roupas
Polidos e profundos
Tiro um braçado branco
De roupa íntima,
Pelo quarto se esparze
Um ambiente de horto.

Dir-se-ia que eu tivesse nos armários
Preso o verão!

Esse perfume é o meu. Beijarás mil mulheres
Amorosas e jovens, mas nenhuma
Há de dar-te a impressão de amor agreste
Que eu te dou.

Por isso, em meus armários
Guardo frutas maduras,
E entre as dobras de minhas roupas íntimas
Escondo, com manolhos secos de vetiver,
Marmelos redondos, maturescentes.

Trago a pele impregnada
Desta fragrância viva;
Beijarás mil mulheres, mas nenhuma
Há de dar-te a impressão de arroio e selva
Que eu te dou.

El cuarteto de nos Ya no sé qué hacer conmigo (2007):


Segunda, 21 de julho
(mas poderia ser Quinta, 29 de novembro)

            Cheguei à minha casa despenteado, com a garganta ardendo e os olhos cheios de terra. Tomei banho, troquei de roupa e me instalei atrás da janela para beber mate. Senti-me protegido. E também profundamente egoísta. Via passarem homens, mulheres, velhos, crianças, todos lutando contra o vento, e agora também contra a chuva. No entanto, não tive vontade de abrir a porta e chamá-los para que se refugiassem na minha casa e me acompanhassem num mate quente. E não porque não me tenha ocorrido fazer isso. A ideia me passou pela cabeça, mas me senti profundamente ridículo e comecei a imaginar as caras de desconcerto que as pessoas fariam, mesmo no meio do vento e da chuva.
         [...] Francamente, não sei se creio em Deus. Às vezes, imagino que, no caso de existir Deus, esta dúvida não o desgostaria. E então? Talvez Deus tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa”.
(Mario Benedetti, A Trégua, 1959).

Noel Guarany Balseiros do Rio Uruguay (1975): 

O vendedor ambulante
(Juana de Ibarbourou, 1895 a 1979)
Tradução de Aurélio Buarque de Holanda, “Grandes vozes líricas hispano-americanas” (1990)

Nos seus grandes sapatos carrega pó de todos
Os caminhos da América. Nosso violento Sol
Tostou-lhe no amplo rosto a brancura nativa
E pôs-lhe como um selo essa morena cor.

No baú que lhe arqueia o dorso de gigante
Leva presa a menina do olho e a plena cobiça
Do índio, cujos olhos retintos se encadeiam
Com a tosca riqueza alegre dos vidrilhos.

Tornou-se amigo íntimo de auroras e de ocasos.
Conhece o paladar de acres frutas selváticas
E dos ásperos lábios das mulheres indígenas,
Fetichistas, citrinas, mudas, lentas e pálidas.

Nunca terá uma casa tépida quanto a minha,
E, se lhe nasce um filho, talvez não saiba nada.
Veio ao mundo com o fado vagabundo dos ventos:
Hoje, um povo; amanhã, a montanha ou a pampa.

Sinto, vendo-o passar, uma emoção complexa:
Eu, a mulher que nunca deixou a sua casa,
A que não vê jamais mudar seu horizonte,
Não sei bem se o que sinto será inveja ou lástima.

Sobre si, como dentro do baú milionário,
Quanto espantado olhar arrastará consigo!
Os seres que contemplam as coisas invisíveis
Crerão que arrasta um maço multicolor de fitas.


Dorival Caymmi Dora (1960):





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