Luli Acevedo, Visiones, 2014
Nem só de caracóis vive o Uruguay...
Cheiro de Fruta
(Juana de Ibarbourou,
1895 a 1979)
Tradução de Aurélio Buarque de
Holanda, “Grandes vozes líricas hispano-americanas” (1990)
Com marmelos maduros
Perfumo os meus armários.
Tem toda a minha roupa
Um aroma de fruta que ao meu
corpo
Dá um constante sabor a
primavera.
Quando dos guarda-roupas
Polidos e profundos
Tiro um braçado branco
De roupa íntima,
Pelo quarto se esparze
Um ambiente de horto.
Dir-se-ia que eu tivesse nos
armários
Preso o verão!
Esse perfume é o meu. Beijarás
mil mulheres
Amorosas e jovens, mas nenhuma
Há de dar-te a impressão de amor
agreste
Que eu te dou.
Por isso, em meus armários
Guardo frutas maduras,
E entre as dobras de minhas
roupas íntimas
Escondo, com manolhos secos de
vetiver,
Marmelos redondos, maturescentes.
Trago a pele impregnada
Desta fragrância viva;
Beijarás mil mulheres, mas
nenhuma
Há de dar-te a impressão de
arroio e selva
Que eu te dou.
El cuarteto de
nos – Ya no sé qué hacer conmigo (2007):
Segunda, 21 de julho
(mas poderia ser Quinta, 29 de
novembro)
“Cheguei à minha casa despenteado, com a garganta
ardendo e os olhos cheios de terra. Tomei banho, troquei de roupa e me instalei
atrás da janela para beber mate. Senti-me protegido. E também profundamente
egoísta. Via passarem homens, mulheres, velhos, crianças, todos lutando contra o vento,
e agora também contra a chuva. No entanto, não tive vontade de abrir a porta e
chamá-los para que se refugiassem na minha casa e me acompanhassem num mate
quente. E não porque não me tenha ocorrido fazer isso. A ideia me passou pela
cabeça, mas me senti profundamente ridículo e comecei a imaginar as caras de
desconcerto que as pessoas fariam, mesmo no meio do vento e da chuva.
[...]
Francamente, não sei se creio em Deus. Às vezes, imagino que, no caso de
existir Deus, esta dúvida não o desgostaria. E então? Talvez Deus tenha uma face de crupiê
e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e
vice-versa”.
(Mario Benedetti, A Trégua, 1959).
*Postado originalmente no CoV em
29.11.2012:
Noel Guarany – Balseiros do Rio Uruguay (1975):
O vendedor ambulante
(Juana de Ibarbourou,
1895 a 1979)
Tradução de Aurélio Buarque de
Holanda, “Grandes vozes líricas hispano-americanas” (1990)
Nos seus grandes sapatos carrega
pó de todos
Os caminhos da América. Nosso
violento Sol
Tostou-lhe no amplo rosto a
brancura nativa
E pôs-lhe como um selo essa
morena cor.
No baú que lhe arqueia o dorso de
gigante
Leva presa a menina do olho e a
plena cobiça
Do índio, cujos olhos retintos se
encadeiam
Com a tosca riqueza alegre dos
vidrilhos.
Tornou-se amigo íntimo de auroras
e de ocasos.
Conhece o paladar de acres frutas
selváticas
E dos ásperos lábios das mulheres
indígenas,
Fetichistas, citrinas, mudas,
lentas e pálidas.
Nunca terá uma casa tépida quanto
a minha,
E, se lhe nasce um filho, talvez
não saiba nada.
Veio ao mundo com o fado
vagabundo dos ventos:
Hoje, um povo; amanhã, a montanha
ou a pampa.
Sinto, vendo-o passar, uma emoção
complexa:
Eu, a mulher que nunca deixou a
sua casa,
A que não vê jamais mudar seu
horizonte,
Não sei bem se o que sinto será
inveja ou lástima.
Sobre si, como dentro do baú
milionário,
Quanto espantado olhar arrastará
consigo!
Os seres que contemplam as coisas
invisíveis
Crerão que arrasta um maço
multicolor de fitas.
Dorival Caymmi – Dora (1960):
Nenhum comentário:
Postar um comentário