quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Padre Calisto e a Menina do Vestido Bonito

Fúlvio Pennacchi, Os camponeses, 1986


O Padre Calisto e a Menina do Vestido Bonito
Um conto sobre os italianos de Caraá/RS
C. A. Albani da Silva, o Inventor do Vento

RESUMO
O conto abaixo surgiu entre 2009 e 2010 para registrar algumas histórias a mim relatadas por minha mãe, a Mamica (1955-2015) e por minha madrinha. Metamorfoseando em literatura suas deliciosas lembranças de infância no interior de Santo Antônio da Patrulha/RS, no, então, distrito de Caraá, lá por meados dos anos 1960, netas de imigrantes italianos, aproveitei para incorporar a presente narrativa uma história fantástica sobre o Padre Calisto. A origem de seus dons sobrenaturais estaria ligada a um curioso episódio que marcou a meninice das minhas musas. O episódio foi verídico, as conseqüências, nem tanto. O conto saiu publicado em 2012, no livro “Raízes: 200 anos de criação do município de Santo Antônio da Patrulha”.

I
            Lá em Glorinha só se falava nisso. E também de alguns bailes que sempre terminavam em briga. Católico, umbandista, espírita, à toa, alguns evangélicos e até os descrentes lotavam a Igreja Matriz da cidade, todo domingo, às 8h, pra ver o Padre Calisto. Humildes rostos sofridos, de todas as cores, e até mesmo alguns ricaços, davam as caras pelos bancos e corredores da velha Igreja pra tomar bênção do Padre.
            Idosas e pessoas de meia idade predominavam no culto, com suas faces emocionadas e lacrimejantes, curiosas e dúbias, esbaforidas, por vezes, amedrontadas com o que poderiam ver. Os jovens não eram tantos, mas iam algumas crianças barulhentas e impertinentes que falavam e choravam simultâneas ao sermão. Também iam alguns adolescentes entediados, levados pelas orelhas por mães, avós ou tias que queriam lhes tirar, na marra, a moleza do corpo, a falta de pudor ou o vício das drogas. Homens iam também, especialmente os desempregados e biscateiros. Assim se amontoavam todos na Igreja.
            A cerimônia chegava ao fim. Mas o fim era a sua parte mais longa e esperada. Para algumas madames, apressadinhas, bem que poderia ser a primeira coisa da missa. Não para a senhora de óculos grossos que se encontrava ao lado do altar. Tapeando-se com a hipermetropia, esbanjava paciência. Trazia consigo o livro de cânticos, hinos e louvores em que enterrava a cara. Estava precisando de um oculista. Mesmo toda atrapalhada, sua voz agradava. De bigode viçoso e olhos cabisbaixos, seu marido lhe acompanhava tocando um teclado japonês. “Santo, Santo, Santo é o Senhor...” A Igreja explodia num coro só, com mãos ao alto, entre palmas disritmadas e múltiplas afinações que deixavam a cena com um ar de arranjo musical de vanguarda.
            - Irmãos, é chegada a hora pela qual todos vocês esperam, semanalmente, com o coração cheio de fé, radiantes na Luz do Senhor. Serão vocês guiados e benzidas vossas feridas serão pelas mãos e voz desse homem puro que mantém vivo o legado da Santa Madre Igreja. - Falava o pároco, completamente suado.
            O mais velho dos dois coroinhas, vindo de uma porta adjacente à sacristia, empurrava o Padre Calisto numa cadeira de rodas. Já fazia alguns anos que Calisto não ministrava mais cultos, ao invés disso, descansava e orava nos bastidores preparando-se para atender à sofrida comunidade que vinha até ele atrás de milagres. E ele tinha, há uns 40 anos, fama de milagreiro. Andou por todo o Estado, passou por diversas dioceses e acabou comprando briga com muitos setores da Igreja Católica por esse seu costume de dar passes e benzeduras aos fiéis e de publicar livros em que relatava visões e conversas com entidades divinas. Encontrou salvaguarda na Renovação Carismática, um segmento que queria salvar a Igreja da ruína da vida urbana e da competição neopentecostal, fazendo das missas algo mais dinâmico do que de costume.
            Assim, a fila serpenteava do altar à praça, em frente à Igreja. Quase todos enfileirados respeitavam-se, mas alguns se olhavam de esguelha defendendo seus lugares como um soldado defende a base militar ou um burguês a propriedade privada. As crianças modorrentas, passados alguns minutos, dormiam nos colos dos pais, e estes as importunavam “filhinho, acorda, vamos ver o santinho e agradecer por você ter crescido forte e gordo”. Muitos dos que se apertavam, pelo Padre taumaturgo, queriam pagar promessas, entregando-lhe uma carta de agradecimento redigida em sofrível chamegão, dando-lhe uma rosa, um beijo na mão e dizendo-lhe um muito obrigado. O pároco só não instituía um dia específico para ação de graças ao Padre, e outro de pedidos e aconselhamentos, porque Calisto já era muito velho. Talvez ainda estivesse na casa dos setenta, mas o peso de seu misticismo, a vida ascética, as perturbações das visões, os jejuns infindáveis, as horas intermináveis de contato com o povo, tudo isso havia lhe roubado a saúde. Portanto, bastava uma vez por semana para que refrescasse a alma dos pecadores. É bem verdade que o Padre não dizia ai!, seguindo apenas com o seu dever transcendental.
            Também não cobrava nada de ninguém. Somente quem quisesse é que contribuía com alguns trocados, livre e espontaneamente, para o custeio do cerimonial. Ou então, quem pudesse que comprasse umas camisetas com a estampa do Padre, ou um de seus livros visionários, um de seus calendários ilustrados, uma ou duas de suas imagens e pingentes e fotografias e folhetos de orações vendidos avulso com 10% de desconto à vista. Quase todo mundo levava alguma coisa. Lembrancinhas daquela santidade.
            - Padre, bom Padre, meu filho não arranja emprego!
            - Ele já procurou? – O padre colocava a mão nodosa sobre a testa da devota, fechando os olhos para entrar em transe. – Hum, dum-dum, ãh, hum-dum – Resmungava. – Mande-o procurar um vereador que é tempo de eleição.
            E a mulher sentia um calor, a testa ardia como se a mão do Padre fosse um braseiro.
            - Padre, bom Padre, não consigo engravidar!
            - Já pensastes em casar? – Era pegar na mão do crente, ou tocar em suas testas e o Padre parecia captar todas as vibrações cósmicas que emanavam daqueles mortais, sugerindo-lhes saídas para suas sinucas de bico. - Hum, dum-dum, ãh, hum-dum – Deixe de estudar um pouco e vá ao baile, minha filha.
            De quando em quando, o Padre mandava os coroinhas aglomerar pessoas que tinham problemas em comum e lhes borrifava água benta, fazia o Sinal da Cruz, benzia com preces e orações em latim, usava ervas, unguentos e outras coisas mais.
            - Padre, bom Padre, meu marido me traiu.
            - Padre, bom Padre, brigo muito com meu genro.
            - Padre, bom Padre, e a Seleção Brasileira que não vence?
            - Padre, bom Padre, roubaram o meu armazém – Meu filho, procure o delegado. Mas também... hum, dum-dum, ãh, hum-dum.
            - Padre, bom Padre, sinto terríveis dores nas costas.
            - Padre, bom Padre, tenho depressão.
            - Padre, bom Padre, o cachorrinho do guri foi atropelado.
            - Padre, bom Padre, é o sonho da casa própria.
            - Padre, bom Padre, meu filho bebe muito.
            - Padre, bom Padre, aplico no petróleo ou no mercado de enlatados?
            - Padre, bom Padre, problemas de Imposto de Renda.
            - Padre, bom Padre, desviei verbas da Prefeitura.
            - Padre, bom Padre, a mulher que eu amo não me ama.
            - Padre, bom Padre, minha vizinha fala alto demais.
            - Padre, bom Padre, engravidei aos dezessete.
            - Padre, bom Padre, compro um carro ou uma moto?
            O coroinha mais moço, a bocejar, pensava por que todo mundo sempre começava dizendo a mesma coisa (“Padre, bom Padre”)? Talvez fosse uma senha para os arrebatamentos místicos do Padre Calisto. Às vezes, o bom homem parava, por alguns minutos, como se nada nem ninguém existisse a sua frente, e fazia alguns oráculos meio obscuros, cochichando ao ouvido do pároco ou do coroinha mais velho, que traduziam as profecias ao povo.
            - Quem não tem porta não há de entrar.
            - Os sinos ainda badalam, mas já escuto o ribombar dos fogos.
            - É de noite que menos se enxerga.
            - Dai de beber ao que tem sede, de comer ao que tem fome.
            - Lutem mais e reclamem menos.
            Apesar de já um tanto encoberta, por trás de uma máscara de rugas que eram como valas secas cortando a cara do velho Padre Calisto, ainda se enxergava, claramente, uma feia cicatriz enviesada sobre seu cílio esquerdo, na testa. O coroinha mais moço, olhando aquilo, perguntava-se, sempre curioso, desde quando esse Padre era santo e profeta e curandeiro e conselheiro de almas? Algumas senhoras mais velhas diziam que seu primeiro arrebatamento místico foi quando tinha uns 20 e poucos anos, ainda lá em Santo Antônio, da onde viera, descendente de italianos. Antes de ser padre, parece, queria é criar passarinhos. De qualquer forma, mais e mais e mais pessoas chegavam à Matriz, estendendo àquele ritual até o meio da tarde, ou além, naqueles santos domingos sem-fim. E toda aquela gente cria que o Padre Calisto teria todas as respostas e que lhes curaria de suas dores e chagas e fardos pesados.

II
            Era sempre assim. Vestidos fascinavam a Pretinha. O mundo inteiro parecia parar, irretocavelmente imóvel, restando somente ela e sua respiração ofegante, ao vislumbrar um belo vestido. Na escola, era o vestido da professora, mas também o da Ana Monticelli, a coleguinha filha dos então donos do moinho, do alambique e da serraria. Na Igreja, eram os vestidos das senhoras que rezavam seus terços e ouviam o latim do padre sem entender patavina. No entanto, aqueles vestidos eram sombrios demais, concluía a Pretinha. As senhoras pareciam urubus ou corvos bicando os farelos da hóstia, quase todas vestidas de negro. Ah! as meninas do Lorensi, cada vestido tão lindo! Em azul, em amarelo, listrados. Todos de alcinha, bordados nas barras. Algodão. Chita. Macios. E os bolsinhos? Cabia o mundo naqueles bolsinhos. As bonecas de sabugo de milho. Os biscoitos de açúcar nos tempos de Páscoa. Os cascalhos molhados do arroio e da sanga ou do Rio dos Sinos, que mal nascia morro acima e já vinha violento, descendo numa cusparada de água que dividia as duas vilas. Tão humildes quanto as pessoas que nelas moravam.
            O mundo de Pretinha era aquelas duas vilas e a casa dos pais. Tinha a ponte que, arfante como uma senhora muito idosa, sem bengalas, balançava, balançava, balançava, ameaçava, mas não caía. Já os tipos humanos eram todos muito parecidos. Falavam o Bergamasco pra fofocar entre si e o português para o resto. Todos os homens ali tinham a mesma profissão. Ou seja, sabiam fazer um pouco de tudo. Uns eram mais altos, outros mais magros. Uns mais fortes, outros, mais fracos. Uns mais inventivos, outros, mais acomodados. Uns mais bonitos, outros, mais feios. Só que todos eram homens do campo. Sabiam montar e fazer as mulheres gerarem frutos assim como a terra. Perambulavam dos Campos de Tramandaí aos de Viamão, vendendo os poucos excedentes do vinho, do arroz seco, das frutas, que produziam. Naquele lugar, além da ponte, da Igreja e da escola, só havia um moinho, uma ferraria, uma serraria - que, entre outras coisas, fazia alguns caixões, pois a morte, intrometida, não se esquecia daquele canto escondido do mundo - um ou dois alambiques (que viviam mudando de dono, mas que sempre serviam pingas boas) e roças, muitas e pequeninas roças.
            As mulheres também montavam, mas dedicavam-se mais à cozinha e à costura, reproduzindo conhecimentos ancestrais que teimavam em não morrer, pelo menos até a chegada das máquinas. Cuidavam das hortas e pomares com seus maridos. Educavam os filhos com ternura e severidade. Pois terno era o bucolismo daquela vida em meados do século XX, e severas eram as lutas diárias. Lutas que seguiam um curso sinuoso, como o Dos Sinos, desde que os avós de Pretinha haviam abandonado a Itália (ou seria a Itália que os abandonou, surrupiando suas terras para a produção de mercado e para as fábricas capitalistas?).
            O único avô ainda vivo, cego, todo dia cinco, religiosamente, atravessava a ponte e ia visitar os 13 netos. Vinha no lombo de um burrinho. O animal já sabia o caminho de cor. E de cor Pretinha sabia as histórias do velho, que sempre contava as mesmas. Contos sobre a tristeza do navio que zarpou do Mediterrâneo e chegou ao Rio Grande, trazendo consigo famílias de trabalhadores que seriam alojados, lá por volta de 1898, em colônias. Ou melhor, terreninhos perdidos em Santo Antônio para começarem novas velhas vidas, no Fraga, no Lajeadinho, no Caraá, e onde mais existissem terras à espera de mãos calejadas. Apesar de triste, foi lá no navio que o vô Carlos encontrou a mulher da sua vida, uma camponesa medieval que parecia ter sobrevivido aos séculos.
            Certa vez, lembra Pretinha, o avô trouxe uns tecidos e a mãe fez vestidos novos para todas as cinco moças da família. Incluindo a Pretinha. Por isso, sempre que o burrinho despontava no gramado de casa, com o avô na garupa, ela fechava os olhos escuros e cerrava os punhos, desejando, com uma força capaz de empurrar o moinho, o arado e o descascador de arroz juntos, num embalo só, que a bondade do velho trouxesse o esperado presente. Mas não, o avô nunca mais trouxe panos, muito menos vestidos ou qualquer outro mimo que não suas histórias.
            Quando não pensava em moda, Pretinha corria livre pelo gramado. Respirava o ar puro, frio ou quente, mas sempre puro, que emanava daquela terra que a professora dizia se chamar Brasil. Valha-me, Deus. O que isso importa? O que importa é fantasiar namoros para as bonecas, correr atrás das galinhas, esmagar com os pés a uva do vinho. Esconder-se no porão do sobrado modesto, mas espaçoso e altivo, de madeira, em que morava. Aquele porão era um país à parte. Diziam que escravos aferrados em gargalheiras e tornozeleiras ainda arrastavam seus fardos e penas e correntes nas madrugadas de lua cheia por aquele porão. O Negro Antônio era filho de algum desses escravos almas penadas, e era dentro do saco dele que Pretinha iria parar se incomodasse muito, dizia o pai.
            As noites de lua cheia eram exóticas, pareciam aumentar a visão e a sensibilidade de todos no lugarejo. A Dona Amiani, os Rossoni, os Petró, o velho polaco, as espanholas e também os portugueses das redondezas, que eram intratáveis, mas não cegos, enfim, cada um deles já tinha visto lobisomem correndo pelo mato e roubando galinha. Mas quem seria a fera? O Seu César, caolho? O Seu José, ganancioso e mesquinho vendedor de rapadura? Ou até mesmo a Maricota? Hum, a solteirona dos Albani tinha a cara peluda, ralhava com os meninos e nunca conheceu o calor de um homem por entre as pernas. Sabe-se lá. Uns diziam uma coisa, outros diziam outra. A opinião de cada um valia sempre mais que a do outro. E assim não se entendiam nunca.
            Ás vezes, o divertido era tapear-se com a tripa de irmãos estabanados e peidorrentos. Um gago, outro medroso, outro mentiroso, outro quieto, outro doente, outro que já era adulto e tinha ido embora. Ir embora. Cada vez mais as irmãs iam embora. Quando uma aparecia com namorado, era sinal de que, em breve, mais um adeus, sempre cheio de prantos e lamentos, invadiria a casa. Lá se iam pra cidade, as raparigas virando mulher, criando os pimpolhos que pariam e perdendo-se em ilusões.
            A última irmã a se casar chorava e chorava e chorava. O irmão medroso até pensou que ia ter enchente de São Miguel por causa de tamanho pranto. Pretinha não entendia o porquê de tanta lamúria. Pra que chorar com um vestido tão bonito, véu e grinalda, branquinho, como as nuvens do céu? Só podia ser por causa daquela barrigona da irmã, uma pança como que se a mana tivesse comido, sozinha, o leitão da festa de núpcias. Sim, sim! Era dor de barriga que encharcava os olhos da noiva.
            Os irmãos não eram muito mais velhos que Pretinha. Dava impressão que tinham nascidos todos na mesma época. Com isso, a mãe mandava a filha mais jovem com eles para a catequese. Aprender a rezar. Aprender os mistérios gozosos. Ler a Bíblia, confessar, estudar os sacramentos e outras tantas lições. Pretinha aprendia essas coisas melhor que os irmãos, que pareciam ter em comum uma desatenção generalizada.
            Não deu outra. No último dia de catequese dos manos, o Padre disse, satisfeito, “essa é futura beata, Dona Lúcia. Me saiu à avó, sabe rezar com uma fé que impressiona. Já os meninos... Bote a senhorita Maria na beca que ela comunga, próximo domingo, junto mesmo com essa turma de catequese”. Dito e feito. Trabalho e fé. Os orgulhos da mãe e do pai. Pretinha comungaria domingo, novinha, novinha, de asinha e tudo, parecendo anjinho, deixando a todos orgulhosos. E a mocinha irradiou-se toda, como um lampião. Quem sabe agora não ganharia um vestido novo? Seu coração pequenininho pulsava a um ritmo alucinante, tamborilando feroz. 
            A semana foi passando e a excitação de Pretinha, primeiro, virou leve receio, depois, temor mesmo, e, por fim, frustração seguida de raiva. Que vestido que nada. O pai parecia ter-se esquecido da cerimônia, pois como que só falava no preço da uva, na saca de arroz, na chuva que não vinha, nos comunistas comedores de criancinhas, no desemprego do José. Pra piorar, a mãe não largava aquele trapo velho. E costurava e remendava e alisava e media e lavava e esfregava e secava ao sol. Cristo Rei! O vestido da irmã seria aproveitado nela de novo? Bem aquele vestidozinho gasto, desbotado, que quase tinha ido fora, usado e abusado por uma das irmãs mais velhas, na catequese e nas quermesses, há anos? Bem que poderiam ser séculos, com a aparência que tinha. Valha-me, Deus! O sábado chegava.
            Logo após o almoço, o pai e a mãe sesteavam. Distantes em seus sonhos, quase lá em Bérgamo, na planície do Pó. Os irmãos se decidiam. Correr pra sanga e apedrejar passarinho. Lá tinha saíra, azulão, corruíra, bem-te-vi, sabiá, canarinho, cravina, garibaldi e pardal. Mas pardal não contava. Pardal tinha demais. Munidos de certa perversidade, gravetos e fósforos para assar os pássaros fuzilados, a trupe desceu a ribanceira rumo à caçada. Pretinha bem que iria também. Se não fosse o vestido. Dependurado no varal, o maldito farrapo ria e debochava e caçoava e fazia caretas pra Pretinha. Humilhava àquele pobre coraçãozinho que só queria ficar bonitinho pra Primeira Comunhão. Foi quando então veio, de um lado sombrio, até então desconhecido, por Pretinha, lá do fundo do peito, a ideia.
            O Lobo e a Branca vagabundeavam na sombra da figueira velha. A mesma figueira que agora acolhia os cachorros e que um dia acolheu índios altivos e ermos que descansavam sossegados sob sua sombra altaneira. Sim, o Lobo e a Branca, devoradores de sandálias e tamancos e qualquer calçado ou roupa que estivesse ao alcance de suas presas afiadas. Pretinha deu um salto olímpico, os braços magrelos e brancos esticados, convictos, e num puxão só, o vestido malévolo foi arrancado do varal. O que se seguiu foi o assobio aos cachorros, que parecia dizer, em bom português, “totó, comida, totó, festa, totó, brinquedo, totó, vem brincar, vem”. O que sobrou do vestido foi um arremedo de pano encardido.
            Já era quase noite quando Dona Lúcia e Seu Miguel viram o estrago. Pobres dos cães que apanharam sem saber por quê. O que fazer àquela hora, na véspera de cerimônia tão importante? Não havia alternativa a não ser remexer no colchão de casal, sacar alguns contos das parcas economias e comprar um vestido novo. Lá se foi Seu Miguel, estrada afora. A casa de fazendas era seu destino.
            No dia de domingo, ficou combinado que, para todos que fossem fazer a Primeira Comunhão chegarem asseados, eles pegariam carona na charrete do Padre Calisto. Um jovem padre, recentemente ordenado, filho dos Pelissoli e muito amigo da família. Seriam três viagens, já que a charrete não era muito grande. O resto da família iria a pé mesmo, até a Igreja. Na primeira viagem, o mentiroso e o quieto foram com o Padre Calisto e um condutor. Foram em paz, o Padre dizendo quão especial era aquele dia, as crianças pouco importando, sempre desatentas, e o condutor indiferente a tudo. A volta também foi boa. Na segunda ida, foi a vez da Pretinha e do gago.
            A Pretinha, por pouco, não alçava voo, embevecida de felicidade por usar um vestido novinho, cheiroso e macio. Bolsos fundos e bordados. Um colorido azul e branco, xadrez. Sua gratidão seria perene ao Lobo e à Branca. Guardaria com eles um segredo eterno ou quase. Lá pelas tantas, quando a charrete passava, sacolejando, sem pressa, pelo limoeiro dos Pugens, um canário, loirinho, loirinho, que só vendo, soltou-lhe o grito, trinando uma melodia dançante e sapeca. Aquilo pro gago era insulto mortal. Ele saiu do seu mundo costumeiro de desatenção e ficou eriçado. Não que o gago não gostasse de canários, mas é que fora o único dos irmãos que não abatera nenhum, na tarde anterior, lá na sanga. Mas como para todo mal sempre tem um remédio, o gago sacou do bolso da calça engomada, já meio curta de tanto lavar, uma das pedras que costumava carregar para situações de emergência, como aquela.
            O machinho pousado no galho, exibindo-se para as fêmeas, entrou na mira do gago, que pra tiro de pedra e estilingue era um pistoleiro só, e então prendeu fogo, arremessando a pelota rochosa com tanta energia que quase curou da gagueira. O que ele, nem ninguém esperava, é que o Padre Calisto, franciscano convicto, meteu a cabeça na frente da trajetória do projétil do gago, para admirar e louvar, com mais ardor, àquela bênção de Nosso Senhor que era o canário exibido. A pedra abriu um talho, no lado esquerdo da testa do Padre, sobre o cílio, que lhe fez jorrar sangue como uma fonte jorra água. O Padre desabou da charrete, inconsciente, como desabam os seios das velhas ao passar dos anos. Ainda bem que ele não precisava ministrar a missa naquele domingo.




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