AUDIÇÕES
de FÉRIAS 7
KRAFTWERK
Essa
noite foi muito divertida aqui na biblioteca. Porque eu conversei
sobre música com os eletrodomésticos. Tudo começou com a
geladeira.
(EU):
Qual a sua banda predileta, geladeira?
(GELADEIRA):
Ora, os alemães do KRAFTWERK que, em 1970, inventaram a música
eletrônica e desde então não pararam mais.
(EU):
E você, micro-ondas, por que concorda com isso?
(MICRO-ONDAS):
Porque essa banda começou com a dupla RALF HÜTTER e FLORIAN
SCHNEIDER, que estudavam música erudita na universidade em
Düsseldorf, ouviam um maestro doidão chamado KARLHEINZ STOCKHAUSEN
(1928-2007), que também inventou músicas eletrônicas, com sua
orquestra, trabalhando numa rádio em Colônia, Alemanha, e era
estudioso da música intuitiva. Assim Ralf e Florian começaram com
esse negócio de batidão. Antes mesmo do computador se massificar
eles já estavam inventando as batidas eletrônicas, com teclados e
sintetizadores cheios de fios improvisados mas com sons dançantes e
pop. Embora malucos de terninho e com cara de nerd, senão jeito de
robô mesmo, eles não foram bobos, fizeram tudo de propósito,
claro, artistas inteligentes também com a aparência, com as
narrativas visuais experimentadas no palco.
(EU):
Me explique a geografia de Düsseldorf, motor do carro, fiquei
curioso sobre essa cidade germânica…
(MOTOR
do CARRO): Vruuuum. Düsseldorf é uma cidade no oeste da Alemanha,
vruuum, ham ham, meu amigo, motorista Albani dos Ventos. O rio Reno
corta essa cidade ao meio. Sua parte antiga surgiu na Idade Média,
século XIII, mas a parte moderna é um polo industrial poderoso
desde a II Guerra Mundial. E foi no som dessas máquinas, batendo nas
fábricas e oficinas, que buscou inspiração a banda Kraftwerk,
aliás, em português, USINA de ENERGIA. Vruuuum. Ham ham.
(EU):
Ah! Entendi! E você, telefone celular, tão pequenino e com mais de
500 canções gravadas na memória, embora a gente nunca escute
todas, o que tudo isso significa?
(CELULAR):
Que o quarteto alemão escancarou em sua arte a mistura de homem e
máquina que vem nos envolvendo desde a Revolução Industrial
(1760), e mais ainda com a indústria cultural do século XX,
generosa nos lucros com os capitalistas (através do cinema, TV,
música, moda). Com seu jeitão discreto dentro e fora dos palcos, o
Kraftwerk teve uma ideia genial de considerar encerrado o ciclo dos
artistas geniais: agora, a música mais ouvida no mundo não dependia
mais do talento único de um maestro brilhante, de um pianista
virtuoso, de um guitarrista mirabolante, de um letrista sem igual,
pois tudo era eletrônico, ou digital: loops, círculos, repetições.
Tudo virou máquina! Uma música que nunca para, uma autoestrada
sonora, uma coisa que contamina que nem a radioatividade.
(EU):
O que pode ser ruim e bom! Veja o meu caso, celuloso telefone, curto
o Kraftwerk e outros músicos futuristas tipo assim a dupla francesa
DAFT PUNK, mas não deixo de curtir uma boa canção acústica, só
no violão, com um bom trovador nos contando umas histórias, rimando
e fazendo poesia, como o Gil Scott-Heron nos primórdios do hip hop,
o Bob Dylan na música folk, aqui no Brasil mesmo com um gaudério
xucro como o Gildo de Freitas ou no sertão das barrancas do rio
Gavião um músico que, somente com sua voz e violão encontrou
restos de Idade Média portuguesa e espanhola no Brasil caboclo. Me
refiro ao trovador ELOMAR FIGUEIRA MELLO. Além do que uma boa
sinfonia que nem aquelas do Beethoven e do Vivaldi também é um
barato!
(MÁQUINA
de LAVAR): Kling Klang Cha Cha Chua Chua Klang Kling. Quero dizer,
ninguém discorda disso. Somos máquinas, mas não somos ignorantes.
Claro, menos os revólveres e espingardas, que são máquinas feitas
para ignorantes, autêntica tecnologia feita para guri de 5ª série,
na melhor das hipóteses. Nós, pacíficas máquinas
eletrodomésticas, também adoramos quando o pedreiro da vizinha põe
pra tocar, bem alto, todos os sucessos cafonas de Roberto e Erasmo
Carlos, desde a Jovem Guarda até a Nossa Senhora de Aparecida.
(VASO
SANITÁRIO): Não sou assim tão moderno, mas escuto a eletrônica
também e gosto de limpar a cagada dos outros ouvindo outras bandas
da época do Kraftwerk, bandas com estilo mais barroco, menos pop,
inclusive, com um jeito meio macabro mesmo de tirar som dos
parafusos, como NEU! e o TANGERINE DREAM.
(TELEVISÃO):
Negócio é o seguinte, sei que sou bastante burra, mas pra quem é
curioso, além de ouvir na internet, pode ler três livros sobre o
Kraftwerk e a música eletrônica, meu irmão, que eu recomendo de
coração elétrico: HOMEM, MÁQUINA e MÚSICA (1993) de Pascal
Bussy; EU ERA UM ROBÔ (2000) do ex-integrante da banda, o Wolfgang
Flür e KRAFTWERK PUBLIKATION (2015) de David Buckley.
(CALCULADORA):
Tenho que dizer 1 2 3 4 5 6 7 + 5 x 5 = 25, além disso, digo também
que foi das batidas e ritmos desses alemães esquisitos que surgiu a
primeira batida eletrônica do hip hop, o PLANET ROCK (1982), do DJ
Kool Herc que veio, sampleado, pirateado, misturado, sei lá a
tradução correta, do tema do Kraftwerk: Expresso Trans Europeu
(1977) que, óbvio, lembra um trem nos trilhos.
(LIQUIDIFICADOR):
Sabe aquela vozinha metálica de robô que bomba hoje em dia em tudo
que é música? Pois é, esse som veio de músicas que nem essa do
trem alemão aí. E até o batidão do Miami Drum N´Bass veio
também, tipo que nem o grupo de Londres (isso mesmo: um grupo de
Londres tocando o som de Miami! Eitcha porra essa tal de globalização
hein!) o BAHA MEN (Who let the dogs out? - Quem soltou os cachorros?)
que por aqui virou, na favela, o funk batidão carioca (Só as
cachorras… Do Bonde do Tigrão, no ano 2000). Versão brasileira de
sucesso pop estrangeiro é coisa comum, ou seja, coisa antiga, em
país colonizado, com as suas ideias permanentemente fora de lugar:
lembrem-se da banda Renato e Seus Blue Caps fazendo sucesso na Jovem
Guarda (1965), traduzindo doidamente os Beatles.
(COMPUTADOR):
Blip Blop. Blop Blip. Atualizações estão disponíveis. Vírus
encontrado. Encerro essa arenga musical dizendo duas coisas: 1) Adoro
o estúdio do Kraftwerk, um laboratório criativo chamado KLING KLANG
onde os caras gravaram toda sua biruta bip bop bop bip discografia,
em Düsseldorf, e que foi inspirado noutro ateliê famoso e genial, A
FÁBRICA, do artista visual ANDY WARHOL (1928-1987). 2) As férias de
inverno sempre acabam também. Chega de estudo e de debate. Vamos
bater a bunda no chão!
(EU):
Computador, você não tem bunda! Um livro até tem, a bundinha do
livro, que é a última capa. Mas você não tem!
(COMPUTADOR):
Ah é! Vamos dançar assim mesmo. De qualquer jeito dançar!
Chacoalho meus bits, bytes, pixels e algoritmos: chu chu chá.
Vuuuush
P.
S.: Dedico esta crônica cósmica ao meu irmão Leco Brown que, no
começo dos anos 1990, punha pra tocar umas fitas K7 cheias de música
eletrônica das antigas e gravada também por alemães. Uma pirataria
deliciosa que nos afinou os ouvidos.
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