quarta-feira, 12 de junho de 2019

TANGO do ULYSSES de JOYCE aqui no BRASIL



TANGO do ULYSSES de JOYCE aqui no BRASIL

Em 16 de junho de 2016 fui convidado para uma estranha festa junina em Buenos Aires. Não sabia que havia festa junina na capital argentina. Por lá, ninguém dançava quadrilha nem pulava fogueira de São João. Ninguém falava do Santo Antônio nem do São Pedro, nem de pipoca, quentão ou paçoquinha.
A festa junina se chamava BLOOMSDAY, ou seja, o dia do Seu Leopoldo Flor, que não era nenhum santo, mas um autêntico zé ninguém, como eu e você. Entretanto, desde 1933, essa festa tinha virado tradição, primeiro em Dublin, a capital da Irlanda, depois em outras capitais do mundo.
O organizador da festa chegou acompanhado do filho do Seu Leopoldo, filho adotivo, digo assim só por esclarecimento, Estevão Dédalo, que, novamente, voltava de Paris, de uma viagem de farra e de estudos, para apaziguar as eternas brigas do pai e da mãe, para inclusive enterrar a própria mãe (a biológica). Ele, o pai de Estevão, Seu Leopoldo, é um homem pacato e meio mocorongo, a sua esposa, Dona Molly, senhora, digamos assim, um pouco assanhada, digo, patriótica, namorada do quartel militar por inteiro e enrolada com um amante que visitava sua casa em Dublin todo o dia 16. JAMES JOYCE (1882-1941), o organizador do BLOOMSDAY argentino, e de muitos outros, mundo afora, ensaiou a seguinte conversa comigo.
- Temos duas coisas em comum, Albani! Nossos países foram colonizados por PADRES JESUÍTAS e, eu e você, escrevemos sátiras de grandes lendas mitológicas, épicas, monumentos de bosta nenhuma sobre a nossa época e sobre as nossas cidades natais.
Eu estava confuso: entre espiar as argentinas que se achegavam pra festa e parar pra entender o discurso do famoso escritor irlandês. Então eu só disse, prossiga, companheiro, prossiga. Botei um olho no fósforo e o outro na faísca.
- Pois, não! Homero escreveu em 800 anos antes de Cristo a grande lenda dos heróis antigos: Aquiles brigando na Guerra de Troia conforme está no livro a Ilíada. E Ulysses tramou o Cavalo de Troia contra os troianos e depois esse mesmo grego astuto se perdeu no Mar Mediterrâneo por 10 anos por causa de uma maldição dos deuses no livro a Odisseia. Seu filho Telêmaco de atrás, lhe procurando. A bela, recatada e do lar, Penélope, sua esposa, que muitos outros homens, por interesse, julgavam viúva, ficou engambelando todos eles com uma manta, que nunca terminava de tricotar, espantando assim os pretendentes.
- Sim, eu sei disso. Conheço essas lendas. Grandes e clássicos livros de viagem que Homero inventou. Ele que foi um homem cego, nem sabemos se existiu realmente, mas gostava de cantar esses poemas épicos que compôs 1000 anos antes de Cristo, na Grécia antiga. E o que temos nós com isso, sr. Joyce?
- Eu, por mim, finalizei em 1922 um livro chamado ULYSSES. Do que fala esse meu livrinho de 1000 páginas? Hein? Fala sobre um dia, ou melhor, o dia 16 de junho de 1904, na vida do Seu Leopoldo Flor, nosso homenageado. Dezoito horas de um dia que eu escrevi em dezoito capítulos, porque Leopoldo teve que ficar dezoito horas fora de casa enquanto Dona Molly recebia seu amante. Cada capítulo que eu fiz é uma sátira de um capítulo da Odisseia de Homero e cada capítulo foi escrito de forma diferente, com estilos e técnicas diferentes: teve até um capítulo que lembra uma música de orquestra!
- Uhum! Eu disse.
- Você não vai me perguntar porque me inspirei em Ulysses para minha paródia mirabolante e moderna e não em outro herói antigo? Ahn?
Visivelmente desinteressado, não sei se porque começava a garoar em Buenos Aires, e o frio dava as caras, se porque sentia saudade das FESTAS JUNINAS brasileiras, tão mais descomplicadas que o Bloomsday onde estava metido, ou se as morenas castelhanas é que me roubavam os pensamentos, disse, sim, James, por que você se meteu a esculhambar o clássico de Homero? Por que transformou o herói, o guerreiro, o gênio Ulysses da Antiguidade grega num patético peão, na sua Europa do começo do século XX? Seu Leopoldo, o Ulysses moderninho de James Joyce, é só mais um anônimo ninguém na multidão… Por quê? E fingi uma cara de espanto, sem estar nos meus melhores dias de ator.
- Bem, não foi uma escolha fácil, Albani. Mas olha só. Pensei em vários outros heróis pra me inspirar. Primeiro pensei em Cristo. Minha juventude foi marcada pela descoberta da arte na faculdade de Letras e pela tentativa de romper com as redes que prendiam minha imaginação: minha família, minha Igreja, minha pátria. A Irlanda é uma terra de muita briga nacionalista entre irlandeses e ingleses, entre fanáticos católicos e evangélicos também. Mas eu desisti do Cristo, meu amigo, porque pensei: esse homem divino tem uma falha em sua biografia: não conheceu mulher, nunca teve uma namorada ou esposa. Nada mais difícil do que agradar a uma companheira. Desisti dele!
O papo começou a ficar bom, percebi. Mesmo não fumando, acendi um cigarro e traguei. Ou melhor: o sósia argentino do James Joyce acendeu um cigarro irlandês seu e me ofereceu um crivo. O tabaco era forte como as ideias do James. Depois prosseguiu:
- Pensei em Fausto, o doutor que queria ser rico na Alemanha em 1500, queria ser o mais famoso, queria ser o mais poderoso homem da Terra e pra isso vendeu a alma ao diabo Mefistófeles. Mas esse cara não dava, só pensava em seu umbigo e vivia grudado nesse capeta metido a besta que veio do quinto dos infernos. Daí eu pensei em Hamlet, o príncipe da Dinamarca que viu o fantasma do pai que lhe apareceu para denunciar um golpe de estado e assim Hamlet entrou em parafuso. Mas Hamlet era filho, nunca foi pai.
 - Entre o ser e o não ser finalmente cheguei em Ulysses.
- Ulysses viveu de tudo um pouco. Ficou dez anos estropiado numa guerra maldita entre gregos e troianos (que só interessava aos reis). Era brigador e muito criativo, mas os deuses lhe amaldiçoaram. Enfrentou bruxas e feiticeiras, desde Circe a Calypso, enfrentou gigantes carnívoros, sereias encantadoras. Foi filho do argonauta Laerte, outro grande viajante do tempo antigo, foi pai de Telêmaco, casou com Penélope, e teve até um cachorro, o Argos. Ou seja, o cara tinha e viveu tudo o que um grande herói dos livros de História e da mitologia tem que viver. Mas viveu também tudo o que vive um grande zé ninguém como eu e você, Albani: família, tentações baratas, acertos (poucos), trapalhadas (muitas), se perdeu e se achou bastante pela vida. Achei nele o modelo perfeito para montar as 1000 páginas da minha paródia sobre o HERÓI do COTIDIANO. Só que a diferença é que, na antiguidade, uma grande aventura levava dez, vinte anos pra acontecer. No mundo moderno o que acontecia em 10 anos antigamente pode acontecer em um dia só…
Não sou fumante, já disse isso numa outra crônica sobre o Freud, portanto, depois de pouco tempo, tossi, cuspi e me engasguei ouvindo James Joyce no meio da fumaça de nossos cigarros. Falei assim, após a crise que me deixou com a cara vermelha:
- Você disse que eu também tinha escrito um épico, ou melhor, uma paródia de uma grande lenda, senhor James Joyce. Não me lembro disso. Quando?
Eu disse isso realmente intrigado e pensando muito em minhas canções que falam disso e daquilo, inclusive de livros. Mas desde os tempos da banda Madame Satã, quando piá, até os dias que correm com o projeto Cavalgando o Vento (CoV), minhas músicas nada falam de muito grandioso, elas falam trivialidades, pequenas mentiras que invento para cantar para poucas pessoas.
Foi quando uma morocha portenha se atravessou entre a gente e me tirou para dançar um tango argentino me levando pra bem longe do sósia do escritor famoso. Depois tocou umas músicas irlandesas de Dublin, talvez “EASY and SLOW”, entre outras, tão adoráveis quanto a morena da Argentina e o tango. E ela não parava de dançar fosse o que fosse. E eu que sequer sei dançar dancei que nem um doido, meus amigos, debaixo da chuva.
RESUMINDO: fiquei tão faceiro que me esqueci do James Joyce e suas doidices sobre livros clássicos e sobre a mediocridade da vida das pessoas comuns que são formigas numa grande cidade, como ele mesmo, como eu e você.
No outro dia, acordei no hotel em Gravataí. Sim, existem hotéis em Gravataí. Estava com a roupa toda molhada. Um pouco com dor de cabeça. Um bafo desgraçado e nem sinal da argentina, muito menos do irlandês, nem do sósia do irlandês. No calendário, marcava 17 de junho de 2016. Ou de 2014. Tanto faz. Ao lado da cama o marca página estava na última página do livro Ulysses by James Joyce: tinha uma caricatura do autor nesse marca página e um poema em inglês que Joyce escreveu em outro de seus livros. Eu traduzi mal e porcamente assim: UM CAMINHO SOZINHO PERDER-SE AMAR DURANTE.
Na cabeça, um tango meio roqueiro explodiu os meus pensamentos. A letrinha foi se mostrando uma sátira dessa multidão de joão ninguém casado com maria de nada que forma a classe média brasileira. Pensamos todos que somos importantes com nossos sonhos de comprar e passear. Do contrário incorremos em pecado. Mas se pensarmos que não passamos de titicas de galinha com diplomas ou cargos, curiosamente, parece dar na mesma. O raciocínio do homem e da mulher que vive diluído na multidão é correr atrás de dinheiro fingindo correr na frente de outra coisa grandiosa e sagrada.
Bem, estou sendo abusado demais ao pensar assim de toda a classe média brasileira? Olho para a capa de outro livro de James Joyce jogado sobre a cama do hotel, OS DUBLINENSES, de 1914, e ele me parece dizer, numa voz fininha e de fala rápida, como era a voz de Joyce: foca Albani somente então somente e somente na classe média da tua cidade: na classe média gravataiense e pense e pense!
Agora, sim, tudo faz mais sentido!
Ah! A letra da música ficou assim:
TANGO DO ULYSSES DE JOYCE AQUI NO BRASIL

Eu não sei sambar
E ela não conhece o tango
Eu não sei tangar
E ela não sambou pois caiu um tombo

Busco a paz mundial
Mas vivo num inferno astral
Nem tenho mais cartas na manga

Ganhei um livro qualquer
Com a receita pra ser feliz
Comendo somente meia colher

Eu não sei sambar...
E ela não conhece o...

Meu time perdeu outra vez
Comprei um violão chinês
E nele componho tangos

Vou ao cinema ver filme 3D
Noite e dia penso em você
E rogo a todos os deuses que ainda existem

Quando o verão chegar
Faço minhas malas e vou viajar
São Salvador ou Florianópolis

Eu não sei tangar...
Pois ela já caiu um tombo...

Tã-tã-tã-tã-tã-tan
Você conhece o tango?
Quem realmente conhece?
Eu não conheço o tango!
Mas não confundo com o mambo!

Anulo o meu voto
Odeio a política
Saio de casa somente com um bom guarda-chuva

Me faço de bobo
De pobre coitado, quando convém
Vivo uma vida que não interessa a ninguém
(Será?)

Sou de Leão
Bem esforçado, mas inseguro
Tímido e um pouco atrapalhado

E quando vem o fim do mês
Quito uma dívida por vez
Renovo as esperanças

Eu não sei sambar...
E ela nunca ouviu um tango...

Tango do Ulysses
De brasileiro que se casou
Com uma bela bailarina argentina

Cevo um mate em Buenos Aires
Minha alma se expande no pampa infinito
O mundo aqui é tão bonito

Pero yo no se zambar
Y ella no conoces el tango


Você já leu James Joyce?
Que é que ouve Gardel?
Será que Homero existiu?
Tã-tã-tã-tã-tã-tan
Não sei se estou dentro ou fora
Não, não, não, não, não
Nesse Cavalo de Tróia

Lá lá / lá lá / lalalay

Ando tão triste
Mas ninguém repara
Preciso comprar uma arma ou sair na TV

Bangue-Bangue!

*Dedicada ao tangueiro da Sbórnia: Hique Gomez
** Bateria por Alemão Cristiano
***Todo o resto pelo Inventor do Vento no Lab. de Sons, 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário