Josef Palecek, 1981
ANDERSEN
e a primeira tristeza!
Se
não me atrapalho comigo mesmo, acho que o primeiro contato que tive
com a tristeza foi lendo um dos contos de fadas do Hans Christian
Andersen (1805-1875). Filho de sapateiro e lavadeira analfabeta,
nascido quase no Polo Norte, em Odense, Dinamarca, o operário
Andersen aprendeu a contar histórias ouvindo por anos a fio as
velhinhas de um asilo a tecer o fim de suas vidas com lã e causos.
Foi-se embora para Copenhague escrever livros depois de perder o pai
e comeu o pão que o diabo amassou até ganhar o patrocínio do rei
para viver de sua arte, alcançando a celebridade.
Mas
o que marcou o jeito de contar histórias para as crianças de
Andersen era seu desejo de autor, ou seja, elaborar os seus próprios
contos e poemas pessoais. Em 200 contos diferentes, Andersen inventou
histórias que não eram nem recolhidas do folclore oral de
camponeses, como os Irmãos Grimm fizeram na Alemanha de 1812, ou
pesquisadas na França rural para a corte dos aristocratas, como fez
o francês da Mamãe Gansa, Charles Perrault (1628 a 1703), muito
menos resgatadas das fábulas do corcunda Esopo, da Grécia Antiga,
por Jean de La Fontaine (1621-1695). Era quase tudo inventado da
cabeça do Andersen mesmo, que começou a publicar em 1822, do
próprio bolso, seus Contos de Fadas.
Em
1993 eu estava aprendendo a ler e a escrever, quando soletrei, para a
família Albani da Silva, a pedido das tias, as letras da
palavra-remédio-para-o-nariz: rinosoro, carregando no som dos erres:
RRRINOSSSORRRO! Até hoje, carinhosamente elas riem de mim. Nessa
mesma época, talvez já em 94, não lembro direito, caíram em
minhas mãos três livros com recontos de Virgínia Lefèvre, pela
Editora do Brasil, e com textos ilustrados, do maluco do Andersen.
Tenho a impressão de Mamica ter comprado os mesmos de um livreiro
desses que iam de porta em porta vender bíblia, enciclopédia e
literatura infantil, mas acho mesmo que foi meu irmão, Leco Brown,
quem os ganhou como um prêmio escolar, sei lá por quê. Mas o que
importa é que a SEREIAZINHA me levou às lágrimas pela primeira
vez.
A
guria-peixe morava no fundo do mar, com rabo feito de escamas, no
lugar das pernas, criada entre irmãs vaidosas; com o pai, rei do
povo do mar; e pela avó, portanto, órfã de mãe. Aos quinze anos,
toda sereia ganhava de presente a chance de espiar a superfície.
Sendo a caçula entre seis sereias, ela ouvia o relato da superfície
do mar, ano a ano, de cada uma das irmãs: as luzes brilhantes da
cidade grande; os sinos das igrejas; o poente do sol no horizonte;
vinhedos, castelos e fazendas na terra firme; florestas verdes
também; crianças e cachorros que temiam as sereias como a monstros
e sabiam nadar sem nadadeiras; navios enormes abarrotados de
mercadorias; golfinhos e baleias fazendo piruetas para os
marinheiros; geleiras e águas congeladas no inverno.
No
seu aniversário, a SEREIAZINHA não só subiu até a beira da praia
como salvou um príncipe bonitão de morrer afogado. E afogada ficou
ela pelo desejo, tanto que embestou de provar da curta vida dos
humanos, compensada por uma alma imortal, ao menos para àqueles
humanos da crença bíblica ou judaico-cristã. A SEREIAZINHA apelou
então para a Bruxa do Mar, voltando às profundezas do oceano,
trocando a sua encantadora voz de contralto por pernas que lhe doíam
como mil agulhas lhe espetando, isto tudo só para bailar com o
bonitão que roubou o seu coração. Andersen resolveu escrever que
suas sereias viviam longamente, mas ao morrer, simplesmente viravam
espuma do mar sobre as ondas das praias, sem chance delas terem uma
alma imortal... Além disso, estavam condenadas a não poderem
chorar, já que as lágrimas debaixo d´água seriam redundâncias
como ligar um chuveiro embaixo da chuva ou debaixo de uma cachoeira e
chuá-chuá.
Assim
a PEQUENA SEREIA deixa sua língua no caldeirão, enquanto a Bruxa
mistura o sangue de seu próprio seio macabro ao elixir ainda mais
macabro de humanidade. Feita mulher, com pernocas, dois pés e tudo,
a SEREIAZINHA não poderia voltar a ser sereia, exceto se o amor do
cavalheiro fosse seu. E, sim, ela balançou os desejos do moço, pois
era bonita, mas ele logo lhe revelou ter uma dívida de gratidão com
quem lhe acolheu na beira da praia, ao ter sobrevivido
miraculosamente, a um naufrágio, tempos atrás…
Casando-se
então com outra, e muda de sua poderosa voz, a SEREIAZINHA nunca
pode contar ao gostosão que fora ela quem lhe salvou, ainda
inconsciente, do desastre marítimo! Entretanto, suas irmãs não
aguentaram a saudade e recorreram elas também à feiticeira,
recebendo da tinhosa bruxa, em troca de seus longos e lindos cabelos,
uma adaga enfeitiçada que, ao romper da aurora, sangrando-se o
príncipe apaixonado por outra mulher, voltaria a SEREIAZINHA à
condição de pertencer ao reino dos animais aquáticos e não ao
mundo de pó e ossos dos seres humanos.
Diabos!
A guria olhou, muda, o casal de noivos e não teve a coragem (ou a
covardia?) de lhes sacrificar a faceirice em que estavam, totalmente
apaixonados. Então ela chorou pela primeira vez, erguendo os braços
pro céu. No navio os noivos olharam fixamente as espumas do mar.
Invisível, a SEREIAZINHA beijou o príncipe e sua esposa e foi-se
elevando até o céu, sobre uma nuvenzinha cor-de-rosa. Virou espuma.
E
na capa do original que li e ainda tenho até hoje, dizia assim “…
e outras histórias bonitas”.
(c.
a. albani da silva, o inventor do vento, 02.04.019)
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