quinta-feira, 18 de abril de 2019

UMA PÁSCOA MULTICULTURAL


UMA PÁSCOA MULTICULTURAL

       O Prof. Linduarte Cantor deu um almoço de Páscoa na sua casa. Ele me chamou para ajudar, acabei fritando a peixada, assando pão da Síria e trazendo um barril de vinho. A primeira convidada a chegar foi Ostara. E, rapaz, ela não é mole, não! Um mulherão. Não consegui entender de que país ela vinha, se era Dinamarca, Noruega, Suécia ou Alemanha, mas entendi que a moça é vegetariana. Não come bicho morto de jeito nenhum. Se apresentou como a deusa das primaveras e do equinócio, quando a luz do dia empata com as trevas da noite. Ela também ficou um pouco confusa, pois não sabia que em Gravataí, por estarmos no hemisfério sul do planeta Terra, nosso equinócio pascal era o de outono, não o de primavera como lá no Norte gelado, no meio das florestas germânicas e da península escandinava de onde ela veio. Pra bem-dizer a verdade, vi a moça comentando ao prof. Linduarte Cantor que ela acreditava que a terra era plana e que ela ia averiguar com os outros deuses de Asgard, e com os velhos marinheiros vikings, medievais, se conferia mesmo esse papo dos gravataienses modernos, como o Prof. Linduarte Cantor, e eu, de afirmarem que o mundo é como uma bola de futebol, redondo, ou melhor, pensei eu, que é redondo que nem os peitos da própria Ostara. Ela me deixou um bilhete dentro do ovinho de galinha que trouxe todo pintado com muitas cores alegres de lá da Europa. Antes de eu lhe alcançar a sobremesa, abri, sem quebrar, o meu presente e li o que estava anotado “a vida é um eterno recomeço. Na primavera as plantas renascem depois de um longo inverno. Trago a fertilidade para os homens do campo e para a mulher barriguda. Comigo por perto os passarinhos voltam a cantar. P. S.: Gostei de você. Te vejo em setembro”. Imediatamente já me senti revivido e pronto para lavar a louça do banquete do meu amado Professor.
      O segundo convidado que chegou foi o Moisés. Estupidamente eu não sabia que ele era gago. “Claro, né! Todo judeu sabe disso”, falou o Linduarte. E me explicou que ele, o Profeta Moisés, é gago desde menino, pois queimara a sua língua numa prova de fogo inventada por um conselheiro malvado que trabalhava pro faraó. O conselheiro desconfiou, não sem razão, que a filha do faraó tinha adotado o piá Moisés justamente dentre os escravos hebreus, que andavam querendo uma rebelião contra o rei egípcio e em nome da liberdade, afinal, os hebreus estavam escravizados na África há muito tempo. O preconceito, comentei, é coisa de antigos mesmo…
     Moisés chegou falando de como há milênios andava chateado, porque Jesus havia simplificado os seus 10 mandamentos do Antigo Testamento da Bíblia resumido-os em apenas 2 mandamentos, num famoso sermão narrado por São Mateus no Novo Testamento bíblico. Foram 40 anos perdidos no deserto, insistia o Moisés, numa treta sem fim entre as 12 tribos de Israel; mais as tropas do Egito no encalço dos hebreus; raios e trovões ameaçadores no topo do Monte Sinai, pois Jeová não poderia escrever uma lista de regras tão importante sem um estardalhaço cósmico; tudo isso para um dia pintar um jovem carpinteiro pacifista, chamado Jesus de Nazaré, encurtando o roteiro da salvação nas suas palestras. Reparei que Moisés trancou bem em salvação: sá sassá, sá sassassá ção sassá salvação acudiu o Prof. Linduarte. Fiquei um pouco besta com esse papo de advogado do Profeta Moisés, tratando de leis. Estranhei elas serem tão importantes na Antiguidade, onde quase ninguém sabia ler e escrever, mas fiquei quieto, até porque Linduarte leu meus pensamentos e falou ao pé do meu ouvido: “Você nunca conheceu antes um advogado que atravessou o Mar Vermelho de a pé”! Tive que concordar, mas me deu uma vontade louca de pedir pro Moisés cantar alguma coisa, só pra ver se ele confirmava aquela lenda de que gago não gagueja cantando… Olhei na prateleira da biblioteca do Linduarte e vi o livrinho de cantos hebraicos, chamado Hagadá, que reúne as músicas da Pessach (a Páscoa judaica que comemora a fuga do Egito) e quase lhe alcancei a Moisés, solicitando-lhe que puxasse em Lá menor o hino “Avadim Hayinu”. Não haveria desculpa de esquecer as letras ali com o livrinho em mãos, mas bem nessa hora chegou o terceiro convidado do Professor.
          Fomos surpreendidos pois que veio acompanhado. Jesus e Judas chegaram na paz dos humildes. Moisés é que fechou a cara. Depois deles chegarem, mal abriu a boca para comentar de seus pés de oliveira em Canaã, morrendo também na mesma hora o assunto das leis divinas, afinal, com o filho do Chefe ninguém brinca. Curiosamente Judas foi quem falou o tempo todo. Não sei se para impressionar a linda Ostara, mas inclusive deu uma palestra vivamente acompanhada pelo Linduarte, sobre a necessidade de todo o líder e herói ter um canalha traidor e alcaguete por perto. Se nosso destino já vem traçado desde o nascimento, pelas estrelas e pelos deuses imortais, sem nenhum erro de ortografia, mesmo entre tanta linha torta, Judas e Jesus já estavam de acordo do beijo e da traição desde sempre e pra sempre nas alturas do Céu. Linduarte falou para mim: “Já li isso naqueles evangelhos apócrifos, que ficaram de fora da Bíblia, porque foram escritos por cristãos gnósticos”, eu disse “o quê?”, ele disse, “cristãos místicos, Carlos, cristãos místicos, em que a traição de Judas era bem descrita assim, como um mal necessário para a Paixão de Cristo mudar o mundo”.
      Prof. Linduarte ofereceu a Jesus que almoçássemos ouvindo um disco gospel. E lhe perguntou qual cantor ou cantora seria de seu agrado, que puxávamos o disco no YouTube, mas Jesus, simpático e muito calmo, disse não lhe agradar o repertório gospel. Achava pouco criativo e, por demais, apelativo. “Veja, meu filho”, disse algo assim, o Cristo, “nunca fui de falar muito claro em meus sermões e agora vem este povo e escreve panfletos em meu nome”. Todavia, sempre apaziguador e respeitoso das diferenças, aliás como nenhum outro herói que passou pela casa ou pela biblioteca do Prof. Linduarte Cantor, Jesus arrematou pedindo: “toque o disco do Woody Guthrie. Este cantor americano fez uma música gospel que talvez seja a melhor”! Prestei bastante atenção na letra de 1940, afinal era uma mensagem divina, e senti que Woody representava bem ao Jesus que tinha em minha frente, com sua música falando das pessoas com quem Jesus pode contar há 2000 anos atrás – pobres e trabalhadores, e sobre quem quis vê-lo dependurado numa brutal e triste cruz – sacerdotes, fazendeiros, soldados e banqueiros.
    Chegando diretamente de Miami, com duas coelhinhas, capa de revista americana, nosso último convidado a dar o ar da graça foi o Coelho da Páscoa. Ofereceu-nos cortesias de seus novos produtos feitos em Gramado. Fumava charutos caribenhos e disse que o vinho só beberia se fosse do Porto de Portugal, pois ficava com dor de cabeça, com esses vinhos fuleiros do Brasil. Gostava mesmo era dos espumantes da Champagne, na França, disse também. Mal falou sobre a Páscoa. Não citou renascimento nenhum, sequer a ressurreição de ninguém importante. Mas sabia tudo sobre carros importados, sobre o preço do chocolate na bolsa de valores, apoiava a reforma da previdência proposta pelos bancos para os idosos, e achava que se o Natal continuasse vermelho, por causa do Noel, seria um prejuízo enorme para os comerciantes, pois isso era um estímulo à corrupção. Mostrava uma pança avantajada e disse que tinha pressa, que ia inaugurar uma nova fábrica de doces logo mais, no distrito industrial de Gravataí, inclusive com a presença de padres e pastores, pois a fé fazia muito bem para quem é empreendedor. Olhou nos meus olhos e disse: “Ninguém prospera sem fé no seu próprio negócio, rapaz”. Reparei que em nenhum momento o Coelho reparou na mais ilustre de nossas presenças. Muito menos lhe dirigiu a palavra. Jesus, por sua vez, há muito, tinha ido pro pátio dos fundos, estava brincando, preguiçosamente, com os gatos, cachorros e com os dois filhos do prof. Linduarte Cantor, ambos trazendo beiços lambuzados de chocolate.
          Quando todos foram embora, e eu terminei de lavar a louça, peguei do velho violão e cantei o seguinte poema:

VENTOS de PÁSCOA
Que os teus hebreus estejam libertos do cativeiro do Egito
Que o teu Cristo tenha renascido outra vez e de novo e de novo –
A despeito de todas as Cruzes do mundo;
Que os teus pagãos ponham o arado na terra, pois é tempo de plantar
E que façam uso de suas foices, já que também pode ser tempo de colher:
Isto só depende da lavoura de cada um;
Que as tuas crianças demorem a limpar os beiços sujos lambuzados do chocolate
(tão cheio de surpresas quanto o restante da vida)
E que o Coelho lhes cobre, em troca, apenas o equinócio de um sorriso de outono.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)


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