UMA
PÁSCOA MULTICULTURAL
O
Prof. Linduarte Cantor deu um almoço de Páscoa na sua casa. Ele me
chamou para ajudar, acabei fritando a peixada, assando pão da Síria
e trazendo um barril de vinho. A primeira convidada a chegar foi
Ostara. E, rapaz, ela não é mole, não! Um mulherão. Não consegui
entender de que país ela vinha, se era Dinamarca, Noruega, Suécia
ou Alemanha, mas entendi que a moça é vegetariana. Não come bicho
morto de jeito nenhum. Se apresentou como a deusa das primaveras e do
equinócio, quando a luz do dia empata com as trevas da noite. Ela
também ficou um pouco confusa, pois não sabia que em Gravataí, por
estarmos no hemisfério sul do planeta Terra, nosso equinócio pascal
era o de outono, não o de primavera como lá no Norte gelado, no
meio das florestas germânicas e da península escandinava de onde
ela veio. Pra bem-dizer a verdade, vi a moça comentando ao prof.
Linduarte Cantor que ela acreditava que a terra era plana e que ela
ia averiguar com os outros deuses de Asgard, e com os velhos
marinheiros vikings, medievais, se conferia mesmo esse papo dos
gravataienses modernos, como o Prof. Linduarte Cantor, e eu, de
afirmarem que o mundo é como uma bola de futebol, redondo, ou
melhor, pensei eu, que é redondo que nem os peitos da própria
Ostara. Ela me deixou um bilhete dentro do ovinho de galinha que
trouxe todo pintado com muitas cores alegres de lá da Europa. Antes
de eu lhe alcançar a sobremesa, abri, sem quebrar, o meu presente e
li o que estava anotado “a vida é um eterno recomeço. Na
primavera as plantas renascem depois de um longo inverno. Trago a
fertilidade para os homens do campo e para a mulher barriguda. Comigo
por perto os passarinhos voltam a cantar. P. S.: Gostei de você. Te
vejo em setembro”. Imediatamente já me senti revivido e pronto
para lavar a louça do banquete do meu amado Professor.
O
segundo convidado que chegou foi o Moisés. Estupidamente eu não
sabia que ele era gago. “Claro, né! Todo judeu sabe disso”,
falou o Linduarte. E me explicou que ele, o Profeta Moisés, é gago
desde menino, pois queimara a sua língua numa prova de fogo
inventada por um conselheiro malvado que trabalhava pro faraó. O
conselheiro desconfiou, não sem razão, que a filha do faraó tinha
adotado o piá Moisés justamente dentre os escravos hebreus, que
andavam querendo uma rebelião contra o rei egípcio e em nome da
liberdade, afinal, os hebreus estavam escravizados na África há
muito tempo. O preconceito, comentei, é coisa de antigos mesmo…
Moisés
chegou falando de como há milênios andava chateado, porque Jesus
havia simplificado os seus 10 mandamentos do Antigo Testamento da
Bíblia resumido-os em apenas 2 mandamentos, num famoso sermão
narrado por São Mateus no Novo Testamento bíblico. Foram 40 anos
perdidos no deserto, insistia o Moisés, numa treta sem fim entre as
12 tribos de Israel; mais as tropas do Egito no encalço dos hebreus;
raios e trovões ameaçadores no topo do Monte Sinai, pois Jeová não
poderia escrever uma lista de regras tão importante sem um
estardalhaço cósmico; tudo isso para um dia pintar um jovem
carpinteiro pacifista, chamado Jesus de Nazaré, encurtando o roteiro
da salvação nas suas palestras. Reparei que Moisés trancou bem em
salvação: sá sassá, sá sassassá ção sassá salvação acudiu
o Prof. Linduarte. Fiquei um pouco besta com esse papo de advogado do
Profeta Moisés, tratando de leis. Estranhei elas serem tão
importantes na Antiguidade, onde quase ninguém sabia ler e escrever,
mas fiquei quieto, até porque Linduarte leu meus pensamentos e falou
ao pé do meu ouvido: “Você nunca conheceu antes um advogado que
atravessou o Mar Vermelho de a pé”! Tive que concordar, mas me deu
uma vontade louca de pedir pro Moisés cantar alguma coisa, só pra
ver se ele confirmava aquela lenda de que gago não gagueja cantando…
Olhei na prateleira da biblioteca do Linduarte e vi o livrinho de
cantos hebraicos, chamado Hagadá, que reúne as músicas da Pessach
(a Páscoa judaica que comemora a fuga do Egito) e quase lhe alcancei
a Moisés, solicitando-lhe que puxasse em Lá menor o hino “Avadim
Hayinu”. Não haveria desculpa de esquecer as letras ali com o
livrinho em mãos, mas bem nessa hora chegou o terceiro convidado do
Professor.
Fomos
surpreendidos pois que veio acompanhado. Jesus e Judas chegaram na
paz dos humildes. Moisés é que fechou a cara. Depois deles
chegarem, mal abriu a boca para comentar de seus pés de oliveira em
Canaã, morrendo também na mesma hora o assunto das leis divinas,
afinal, com o filho do Chefe ninguém brinca. Curiosamente Judas foi
quem falou o tempo todo. Não sei se para impressionar a linda
Ostara, mas inclusive deu uma palestra vivamente acompanhada pelo
Linduarte, sobre a necessidade de todo o líder e herói ter um
canalha traidor e alcaguete por perto. Se nosso destino já vem
traçado desde o nascimento, pelas estrelas e pelos deuses imortais,
sem nenhum erro de ortografia, mesmo entre tanta linha torta, Judas e
Jesus já estavam de acordo do beijo e da traição desde sempre e
pra sempre nas alturas do Céu. Linduarte falou para mim: “Já li
isso naqueles evangelhos apócrifos, que ficaram de fora da Bíblia,
porque foram escritos por cristãos gnósticos”, eu disse “o
quê?”, ele disse, “cristãos místicos, Carlos, cristãos
místicos, em que a traição de Judas era bem descrita assim, como
um mal necessário para a Paixão de Cristo mudar o mundo”.
Prof.
Linduarte ofereceu a Jesus que almoçássemos ouvindo um disco
gospel. E lhe perguntou qual cantor ou cantora seria de seu agrado,
que puxávamos o disco no YouTube, mas Jesus, simpático e muito
calmo, disse não lhe agradar o repertório gospel. Achava pouco
criativo e, por demais, apelativo. “Veja, meu filho”, disse algo
assim, o Cristo, “nunca fui de falar muito claro em meus sermões e
agora vem este povo e escreve panfletos em meu nome”. Todavia,
sempre apaziguador e respeitoso das diferenças, aliás como nenhum
outro herói que passou pela casa ou pela biblioteca do Prof.
Linduarte Cantor, Jesus arrematou pedindo: “toque o disco do Woody
Guthrie. Este cantor americano fez uma música gospel que talvez seja
a melhor”! Prestei bastante atenção na letra de 1940, afinal era
uma mensagem divina, e senti que Woody representava bem ao Jesus que
tinha em minha frente, com sua música falando das pessoas com quem
Jesus pode contar há 2000 anos atrás – pobres e trabalhadores, e
sobre quem quis vê-lo dependurado numa brutal e triste cruz –
sacerdotes, fazendeiros, soldados e banqueiros.
Chegando
diretamente de Miami, com duas coelhinhas, capa de revista americana,
nosso último convidado a dar o ar da graça foi o Coelho da Páscoa.
Ofereceu-nos cortesias de seus novos produtos feitos em Gramado.
Fumava charutos caribenhos e disse que o vinho só beberia se fosse
do Porto de Portugal, pois ficava com dor de cabeça, com esses
vinhos fuleiros do Brasil. Gostava mesmo era dos espumantes da
Champagne, na França, disse também. Mal falou sobre a Páscoa. Não
citou renascimento nenhum, sequer a ressurreição de ninguém
importante. Mas sabia tudo sobre carros importados, sobre o preço do
chocolate na bolsa de valores, apoiava a reforma da previdência
proposta pelos bancos para os idosos, e achava que se o Natal
continuasse vermelho, por causa do Noel, seria um prejuízo enorme
para os comerciantes, pois isso era um estímulo à corrupção.
Mostrava uma pança avantajada e disse que tinha pressa, que ia
inaugurar uma nova fábrica de doces logo mais, no distrito
industrial de Gravataí, inclusive com a presença de padres e
pastores, pois a fé fazia muito bem para quem é empreendedor. Olhou
nos meus olhos e disse: “Ninguém prospera sem fé no seu próprio
negócio, rapaz”. Reparei que em nenhum momento o Coelho reparou na
mais ilustre de nossas presenças. Muito menos lhe dirigiu a palavra.
Jesus, por sua vez, há muito, tinha ido pro pátio dos fundos,
estava brincando, preguiçosamente, com os gatos, cachorros e com os
dois filhos do prof. Linduarte Cantor, ambos trazendo beiços
lambuzados de chocolate.
Quando
todos foram embora, e eu terminei de lavar a louça, peguei do velho
violão e cantei o seguinte poema:
VENTOS
de PÁSCOA
Que
os teus hebreus estejam libertos do cativeiro do Egito
Que
o teu Cristo tenha renascido outra vez e de novo e de novo –
A
despeito de todas as Cruzes do mundo;
Que
os teus pagãos ponham o arado na terra, pois é tempo de plantar
E
que façam uso de suas foices, já que também pode ser tempo de
colher:
Isto
só depende da lavoura de cada um;
Que
as tuas crianças demorem a limpar os beiços sujos lambuzados do
chocolate
(tão
cheio de surpresas quanto o restante da vida)
E
que o Coelho lhes cobre, em troca, apenas o equinócio de um sorriso
de outono.
(c.
a. albani da silva, o inventor do vento)
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