terça-feira, 23 de abril de 2019

Ogum virou Jorge que ainda é Ogum


Carybé, Ogum, s/d

RODOPIOS da CULTURA: Ogum virou Jorge que ainda é Ogum

        Veja como a cultura rodopia pelos séculos, disse o cantador Tremenda Luz ao seu jegue de estimação, o Nick Nivaldo. Na Capadócia, Turquia do século III, havia um cavaleiro chamado Jorge. Ele matou o dragão que devorava as ovelhas, donzelas e camponeses na região. Mas o rei de Roma, que dominava a Palestina de cabo a rabo, e se chamava Diocleciano, cortou a cabeça de Jorge da Capadócia por seguir o Cristo quando esta religião era proibida no Império Romano. Mais tarde, os romanos também adorariam a Cruz.
     Mil anos depois de Jorge perder a cabeça (em 287), já no afã das Cruzadas medievais, quando reis e cavaleiros dos feudos e dos castelos europeus queriam tomar, na porrada, Jerusalém dos árabes muçulmanos, os fanáticos do lado ocidental do mundo invocaram Jorge para suas guerras e contra os seus novos dragões. A melhor crônica do herói, nessa época, foi escrita pelo italiano Jacopo de Varazze no livro Legenda Áurea: Vidas de Santos. Assim, em 1387, sob influência dos ingleses e dessas leituras, Dom João I de Portugal escolheu o santo como o grande herói dos guerreiros portugueses.
      Do outro lado do oceano Atlântico, desde a Antiguidade do rio Níger, na negra África dos reinos Daomé e Oyó, Ogum apareceu, espírito de algum antepassado, negro herói fundador de povoados, como a divindade iorubá do ferro, das enxadas para a lavoura, das espadas para as brigas de guerreiros sempre tão cheios de virilidade quanto vazios de compreensão. Desde 1440, as Cruzadas dos portugueses e de outros reinos europeus eram justamente contra os africanos. Já em terras brasileiras, no ano de 1549, o padre Manuel da Nóbrega assistiu à primeira procissão ao corpo de Cristo e a São Jorge na colônia portuguesa da América do Sul.
        Para redimir os pecados dos deuses pagãos, venerados na terreira africana, foram impostos castigos como quatrocentos anos de escravidão, na maior, sagradamente falando, tremenda, cara de pau, por reis, padres e outros colonizadores: literalmente ferrados, os africanos do povo jeje e nagô foram para a América como escravos, amontoados em navios negreiros. Eles chegaram na Bahia e no Rio de Janeiro para trabalhar até a morte e até a conquista dos céus, nas usinas de açúcar do Pernambuco, nas charqueadas do Rio Grande, nas minas de ouro das Geraes, nos cafezais cariocas e paulistas.
      Tremenda Luz, tirando a viola de 10 cordas da capa surrada que lhe acompanha pelas eras, nas suas viagens no tempo, concluiu: em Gana, uma das maiores fortalezas escravocratas da África colonial era dedicada a Jorge. Foi a Fortaleza de São Jorge da Mina, erguida em 1482!
       Nick Nivaldo, muito triste com isso tudo, ou seja, com a intolerância religiosa, com o racismo e os preconceitos, mas encantado com as volteadas que a cultura dá, inclusive no assunto religioso, pelos séculos, afirmou então que isto tudo não foi o suficiente para calar os tambores dos orixás e dos voduns que se disfarçaram nos santos dos católicos do Brasil, quando colônia portuguesa. São Jorge virou o disfarce perfeito para Ogum Rompe-Mato Xoroquê. E acrescentou, cantando agora a canção Lua Bonita (1953), do Zé do Norte, ainda por cima, São Jorge e o Dragão foram parar na Lua, aqui na imaginação dos brasileiros, sendo, como quase todo o guerreiro, um mau marido. Assim como, rebateu Tremenda Luz, na música da sambista Clara Nunes, A deusa dos orixás (1971), Ogum perdeu Yansã para Xangô. O deus da guerra tomou uma ruim no triângulo amoroso para outro deus, digamos, assim, mais culto e mais sedutor de deusas.
       Pouco afeitos a arroubos religiosos de qualquer tipo, Tremenda Luz e Nick Nivaldo partiram para a taberna mais próxima, tomar um vinho para espantar o frio que se achegava e anotar outras histórias para poderem passar os dias ruminando, digo, contando e cantando.
(c. a. albani da silva, o inventor do vento)

Nenhum comentário:

Postar um comentário