Carybé, Ogum, s/d
RODOPIOS
da CULTURA: Ogum virou Jorge que ainda é Ogum
Veja
como a cultura rodopia pelos séculos, disse o cantador Tremenda Luz
ao seu jegue de estimação, o Nick Nivaldo. Na Capadócia, Turquia
do século III, havia um cavaleiro chamado Jorge. Ele matou o dragão
que devorava as ovelhas, donzelas e camponeses na região. Mas o rei
de Roma, que dominava a Palestina de cabo a rabo, e se chamava
Diocleciano, cortou a cabeça de Jorge da Capadócia por seguir o
Cristo quando esta religião era proibida no Império Romano. Mais
tarde, os romanos também adorariam a Cruz.
Mil
anos depois de Jorge perder a cabeça (em 287), já no afã das
Cruzadas medievais, quando reis e cavaleiros dos feudos e dos
castelos europeus queriam tomar, na porrada, Jerusalém dos árabes
muçulmanos, os fanáticos do lado ocidental do mundo invocaram Jorge
para suas guerras e contra os seus novos dragões. A melhor crônica
do herói, nessa época, foi escrita pelo italiano Jacopo de Varazze
no livro Legenda Áurea: Vidas de Santos. Assim, em 1387, sob
influência dos ingleses e dessas leituras, Dom João I de Portugal
escolheu o santo como o grande herói dos guerreiros portugueses.
Do
outro lado do oceano Atlântico, desde a Antiguidade do rio Níger,
na negra África dos reinos Daomé e Oyó, Ogum apareceu, espírito
de algum antepassado, negro herói fundador de povoados, como a
divindade iorubá do ferro, das enxadas para a lavoura, das espadas
para as brigas de guerreiros sempre tão cheios de virilidade quanto
vazios de compreensão. Desde 1440, as Cruzadas dos portugueses e de
outros reinos europeus eram justamente contra os africanos. Já em
terras brasileiras, no ano de 1549, o padre Manuel da Nóbrega
assistiu à primeira procissão ao corpo de Cristo e a São Jorge na
colônia portuguesa da América do Sul.
Para
redimir os pecados dos deuses pagãos, venerados na terreira
africana, foram impostos castigos como quatrocentos anos de
escravidão, na maior, sagradamente falando, tremenda, cara de pau,
por reis, padres e outros colonizadores: literalmente ferrados, os
africanos do povo jeje e nagô foram para a América como escravos,
amontoados em navios negreiros. Eles chegaram na Bahia e no Rio de
Janeiro para trabalhar até a morte e até a conquista dos céus, nas
usinas de açúcar do Pernambuco, nas charqueadas do Rio Grande, nas
minas de ouro das Geraes, nos cafezais cariocas e paulistas.
Tremenda
Luz, tirando a viola de 10 cordas da capa surrada que lhe acompanha
pelas eras, nas suas viagens no tempo, concluiu: em Gana, uma das
maiores fortalezas escravocratas da África colonial era dedicada a
Jorge. Foi a Fortaleza de São Jorge da Mina, erguida em 1482!
Nick
Nivaldo, muito triste com isso tudo, ou seja, com a intolerância
religiosa, com o racismo e os preconceitos, mas encantado com as
volteadas que a cultura dá, inclusive no assunto religioso, pelos
séculos, afirmou então que isto tudo não foi o suficiente para
calar os tambores dos orixás e dos voduns que se disfarçaram nos
santos dos católicos do Brasil, quando colônia portuguesa. São
Jorge virou o disfarce perfeito para Ogum Rompe-Mato Xoroquê. E
acrescentou, cantando agora a canção Lua Bonita (1953), do Zé do
Norte, ainda por cima, São Jorge e o Dragão foram parar na Lua,
aqui na imaginação dos brasileiros, sendo, como quase todo o
guerreiro, um mau marido. Assim como, rebateu Tremenda Luz, na música
da sambista Clara Nunes, A deusa dos orixás (1971), Ogum perdeu
Yansã para Xangô. O deus da guerra tomou uma ruim no triângulo
amoroso para outro deus, digamos, assim, mais culto e mais sedutor de
deusas.
Pouco
afeitos a arroubos religiosos de qualquer tipo, Tremenda Luz e Nick
Nivaldo partiram para a taberna mais próxima, tomar um vinho para
espantar o frio que se achegava e anotar outras histórias para
poderem passar os dias ruminando, digo, contando e cantando.
(c.
a. albani da silva, o inventor do vento)
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